Introdução
Quando revemos a história das Teorias da Comunicação, observamos um amadurecimento conceptual que, naturalmente, vai sendo condicionado pelo ambiente proporcionado pelas evoluções sociais e políticas[1]. Acresce a essa incontornável influência, uma outra - não menos relevante – protagonizada pelas diferentes disciplinas científicas que se foram afirmando ao longo dos tempos e determinaram outras grelhas de leitura dos fenómenos comunicionais. É evidente a influência da Psicologia na teoria hipodérmica e na abordagem empírico-experimental, da Sociologia na abordagem dos “efeitos limitados”, da Ecologia e da Biologia na abordagem funcionalista, da Filosofia e da Economia na Teoria Crítica ou ainda da Engenharia de telecomunicações e da Informática nos modelos comunicativos (nomeadamente no semiótico-informacional).
Provavelmente este campo de cruzamentos e de influências não se esgotará nestas abordagens conhecidas. Outros ramos emergentes das ciências podem vir a constituir “argumentário de inquietação” para a releitura das teorias da comunicação. Um desses casos poderia vir a ser, eventualmente, o influxo da Etologia. Este desenvolvimento relativamente recente do conhecimento científico, situa-se como o estudo da “biologia do comportamento” e quando aplicado ao ser humano, evidencia traços importantes para a compreensão da complexidade da sua natureza. Com evidentes conexões à Psicologia, à Biologia, à Antropologia e à Sociologia, esta esfera do conhecimento, desenvolvida sobretudo a partir dos anos 60 por Konrad Lorenz, e consolidadada, mais tarde, por Irenaus Eibl-Eibesfeldt procura evidenciar traços de comportamento inatos e universais no ser humano, com paralelos significativos noutros seres vivos.
Em que medida os conhecimentos adquiridos pela Etologia podem influenciar a leitura das diferentes teorias da comunicação é a abordagem – naturalmente superficial e tentativa – que este breve exercício propõe. Para tal, faremos uma revisão breve das principais teorias clássicas da comunicação, uma síntese dos dados da Etologia com eventual influência na comunicação e, finalmente, uma aplicação exploratória desses elementos à leitura das principais teorias da comunicação.
Uma breve revisão das teorias da comunicação
Tendo como referência a obra de Mauro Wolf[2] - que constitui um bom manual de abordagem à história das teorias da comunicação - propomos uma revisão das principais etapas da construção de uma leitura integrada e estruturada da comunicação.
A primeira referência de modelo teórico é a Teoria Hipodérmica. Esta abordagem constituiu uma primeira sistematização do fenómeno da comunicação sustentada no princípio de que “cada elemento do público é pessoal e directamente “atingido” pela mensagem”[3]. De uma linearidade evidente – e excessiva - este modelo, nascido na primeira metade do Século XX, época muito marcada pelas guerras mundiais e pela ascensão das comunicações de massa, está sustentado na convicção da existência de uma “sociedade de massa”. Esta, seria constituída por um conjunto homogéneo de indivíduos tendencialmente iguais e indiferenciáveis, isolados e indefesos o que levaria, segundo Blumer, a que esta massa não possuísse “tradições, regras de comportamento ou estrutura organizativa”[4]. Estaríamos, portanto, perante um terreno propício a manipulação, com efeitos instantâneos, mecânicos, universais e previsíveis. Num mecanismo de estímulo/resposta, inspirado pela teoria comportamental behaviorista corresponderia a “uma relação directa entre a exposição às mensagens e o comportamento: se uma pessoa é “apanhada” pela propaganda, pode ser controlada, manipulada, levada a agir”[5]
Lasswell, nos anos 30, começa a esboçar um passo em frente em relação à teoria hipodérmica, através do seu modelo que reduz a lógica mecanicista do estimulo/resposta. Com o seu “Quem diz o quê a quem, por que canal e com que efeito” considera – pelo menos teoricamente - a possibilidade que a mesma mensagem venha a ter um resultado diferente, se diferente for o canal ou o receptor. Ainda assim, considera um modelo de comunicador activo/receptor passivo, isolados, sem relação entre si, numa estrutura assimétrica. Por outro lado, considerava que “a comunicação é intencional tendo por objectivo um determinado efeito, observável e susceptível de ser avaliado”[6].
Estava, assim, aberta a porta à superação do modelo hipodérmico que chega com a afirmação de uma abordagem empírico-experimental. Esta nova etapa, avança na melhor compreensão da complexidade da correlação “emissor / mensagem / receptor” com um contributo específico em que sublinha “que as mensagens dos meios de comunicação contêm características particulares do estimulo que interagem de maneira diferente com os traços específicos da personalidade dos elementos que constituem o público. Desde o momento que existem diferenças individuais nas características da personalidade dos elementos do público, é natural que se presuma a existência, nos efeitos, de variações correspondentes a essas diferenças individuais”[7]. Assim se estruturava o modelo “Causa / (processos psicológicos intervenientes) / Efeito” e se recuava na certeza “hipodérmica” dos resultados, com a ascensão da dinâmica de persuasão: agora, um determinado efeito na comunicação é possível se se tiver em conta os factores devido à audiência (interesse em obter informação, exposição, percepção e memorização selectivas) bem como os factores referentes à mensagem (credibilidade do comunicador, ordem da argumentação, integralidade da argumentação e explicitação das conclusões).
Como nova perspectiva e com um maior ênfase na dimensão sociológica, a abordagem empírica de campo ou dos “efeitos limitados”, procura, por um lado, estudar a composição diferenciada dos públicos e do seu consumo de meios de comunicação e, por outro lado, o contexto social. Como Wolf afirma “se a teoria hipodérmica falava de manipulação ou propaganda, e se a teoria psicológico-experimental tratava da persuasão, esta teoria fala da influência e não apenas da que é exercida pelos mass media mas da influência mais geral que perpassa nas relações comunitárias e de que a influência das comunicações de massa é só uma componente”[8].
Na sua vertente que procurava analisar o consumo dos mass media introduziu como dimensões relevantes o cruzamento da análise de conteúdo, das características dos ouvintes e da sua satisfação. No que se refere aos ouvintes, procura atender ao consumo estratificado por idade, sexo, profissão, classe social, nível de escolaridade, bem como ter em conta expectativas e preferências. Mas talvez seja ainda mais relevante a constatação de que “a eficácia dos mass media só é susceptível de ser analisada no contexto em que funcionam. Mais ainda do que o conteúdo que difundem, a sua influência depende das características do sistema social que os rodeia.”[9] . A palavra-chave é, pois, nesta abordagem, a influência, em que “as dinâmicas sociais se intersectam com os processos comunicativos.”[10]
Um outro contributo importante foi a verificação da relevância dos líderes de opinião, nomeadamente na construção de um fluxo de informação a dois níveis, onde aqueles constituem um nível de mediação essencial entre os meios de comunicação e os destinatários finais, assumindo quase sempre maior eficácia: “se a comunicação de massa depara, inevitavelmente, com o obstáculo da exposição e percepção selectivas, a comunicação interpessoal, pelo contrário, ostenta um maior grau de flexibilidade perante as resistências do destinatário.” Dessa forma, “é o caracter particular da influência pessoal que a coloca em vantagem em relação à eficácia dos mass media, limitando assim os efeitos destes” [11]
Transferindo o foco de atenção dos efeitos para as funções, usos e gratificações exercidas pela comunicação de massa na sociedade, entramos num outro patamar de teorização, constituído pela abordagem funcionalista. Neste campo, o estudo da comunicação faz-se a partir da perspectiva do equilíbrio e do conflito sociais, tendo em conta o facto da “sociedade ser analisada como um sistema complexo, que tende para a manutenção do equilíbrio.”[12] Esta visão, seguramente influenciada, pelas perspectivas da Biologia e da Ecologia, leva a que, na perspectiva estrutural-funcionalista, as relações de funcionalidade visam resolver quatro problemas principais: a manutenção do modelo e o controlo das tensões; a adaptação ao ambiente; a perseguição do objectivo; e a integração.
Na descrição das funções sublinham-se, por exemplo, a difusão de informações que, por um lado, alerta os cidadãos em situações de ameaça e fornece instrumentos para o exercício de actividades, e por outro, a atribuição de posição social e de prestigio às pessoas que são objecto de atenção por parte dos media , o reforço do prestígio de ser bem informado e o reforço das normas sociais. Mas esta abordagem não fica por aqui. Vai mais longe, acrescentando o conceito de “gratificação”, decorrente da convicção de que “o efeito da comunicação de massa é entendido como consequência das satisfações às necessidades experimentadas pelo receptor”[13] que se torna assim sujeito comunicativo. Assim, a actividade selectiva e interpretativa do receptor, baseada em necessidades, passa a constituir parte estável do processo comunicativo, tornando-se questionável o poder até aqui atribuído ao emissor.
Também ao longo de todo o século XX se foi desenvolvendo a Teoria Crítica, da Escola de Frankfurt, que desempenhou um papel de relevo não só no quadro das teorias da comunicação. Define-se na sua identidade básica como “a tentativa de fundir o comportamento crítico nos confrontos com a ciência e a cultura com a proposta política de uma reorganização racional da sociedade de modo a superar a crise da razão”[14]. Procura a análise da sociedade como um todo, recusando a abordagem sectorial, radica também na crítica dialéctica da economia política, intricada com a visão materialista marxista, que leva a que Marcuse diga que “os fins específicos da teoria crítica são a organização de uma vida em que o destino dos indivíduos seja dependente não já do acaso e da cega necessidade de incontrolados laços económicos, mas da realização programada das possibilidades humanas”[15].
É neste ambiente que se afirma um discurso sobre a indústria cultural como sistema que se critica por ter transformado a cultura numa mercadoria, reduzida a valor de troca e empurrada para uma função de ocupação do espaço de lazer e de eliminação da dimensão crítica. Critica-se a standartização, os estereótipos, a baixa qualidade e a aversão à inovação. E em certa medida, retorna-se à teoria hipodérmica, ainda que com mecanismos mais sofisticados, pois como se refere a propósito da televisão, “através do material que observa, o observador é continuamente colocado, sem o saber, na situação de absorver ordens, indicações e proibições.”[16]. Esta desconfiança sobre os mass media vai ao ponto de considerar que “se trata de instrumentos de reprodução de massa que, na liberdade aparente dos indivíduos, reproduzem as relações de força do aparelho económico e social”[17].
Continuando a rodar o caleidoscópio da história, emerge uma outra perspectiva, substancialmente diversa da teoria crítica – a teoria culturológica – impulsionada por Edgar Morin, que visava “estudar a cultura de massa distinguindo os seus elementos antropológicos mais relevantes e a relação entre o consumidor e o objecto de consumo.”[18].
Neste contexto, vê-se a cultura de massa agitada pela dinâmica entre standartização e inovação – já admitida, ao invés da teoria crítica - bem como se sublinha o sincretismo (entre informação e ficção) e a contaminação entre real e imaginário. Particularmente vocacionada para se desenvolver onde “o desenvolvimento industrial e técnico cria condições de vida que desagregam as culturas anteriores e fazem emergir novas necessidades individuais”[19] às quais dão resposta os conteúdos essenciais da cultura de massa: felicidade, amor, aventura, liberdade ou bem estar.
Do outro lado do Canal, em Birmingham, germinou uma outra abordagem, genericamente conhecida como “Cultural studies” que tem em Stuart Hall um dos seus principais protagonistas. É dele a afirmação que “a cultura não é uma prática, nem simplesmente a descrição da soma de hábitos e costumes de uma sociedade. Passa por todas as práticas sociais e é a soma das suas inter-relações”[20]. Daqui resulta um enfoque na continua dialéctica entre sistema cultural, conflito e controle social, com “a análise da especificidade das várias práticas de produção de cultura e das formas do sistema organizado e global que essa práticas geram”[21]. Vale a pena sublinha também que os “cultural studies” se afastam muito das visões conspirativas da teoria crítica que associam os conteúdos ao objectivo de controlo social pelas classes dominantes.
Finalmente, nesta brevíssima revisão das principais teorias da comunicação, sublinha-se a relevância das teorias comunicativas. De raiz substancialmente diferente das anteriores tem várias expressões. A teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver, por exemplo, representa um modelo de transmissão óptima das mensagens. Ao sistema tradicional (emissor/mensagem/receptor), o modelo acrescenta outras componentes importantes, estruturando assim: fonte de informação / mensagem / transmissor / canal / receptor / mensagem / destinatário. Surge pela primeira vez o destaque ao codificador e ao descodificador, que interpretam uma peça chave: o código. A conexão do código com a linguagem é óbvio e faz-nos aproximar da Semiótica, enquanto ciência dos signos, que se introduz de um forma determinante neste sub-grupo de teorias da comunicação, nomeadamente através do modelo comunicativo semiótico-informacional. Neste, “a linearidade da transmissão encontra-se vinculada ao funcionamento de factores semânticos, introduzidos mediante o conceito de código, passando-se da acepção de comunicação como transferência de informação para a de transformação de um sistema no outro. O código garante a possibilidade dessa transformação”[22]. Este modelo centra-se assim no mecanismo de reconhecimento e de atribuição de sentido dentro da relação comunicativa.
Já o modelo semiótico-textual descreve, em termos semióticos, algumas características específicas da comunicação de massa. “Não são as «mensagens» que são veiculadas, o que suporia uma relação paritária entre emissor e receptores, é a relação comunicativa que se constrói em torno de “conjuntos de práticas textuais””[23]. O texto surge com o poder de mediação, na acepção da atribuição de sentido que o autor constrói para ser interpretado pelo leitor. O texto é o local de encontro entre ambos.
A diversidade e amplitude de modelos que procuram explicar os fenómenos comunicativos que ficaram descritos – para além de outros que aqui faltam – evidenciam que não existe um modelo cabal, que reuna consenso universal. Pelo contrário. Nesta linha, segundo McQuail “as comunicações de massa são em grande parte caracterizadas por desigualdade, irracionalidade e disfuncionalidade.. e as actividades implicadas podem parecer, muitas vezes, bastantes diversas a participantes situados de um modo diferente”[24]. Isso estimula, a que se some a estas fontes de conhecimento inter-actuantes com a comunicação, outras que lhe possam trazer contributos para
A Etologia, enquanto estudo da “biologia do comportamento”
Como já foi referido, esta nova Ciência da segunda metade do século XX, nasce da observação comparativa de comportamentos inatos e aprendidos, em vários seres vivos. A sua aplicação aos seres humanos, por Lorenz[25] e Eibesfeldt, levou ao desenho do etograma humano – conjunto de comportamentos não aprendidos – que engloba um conjunto de preceitos ritualizados que visam a exploração do ambiente e a obtenção de vantagens que permitam o êxito da espécie. Neste síntese, seguiremos os trabalhos de Irenaus Eibl-Eibesfeldt, através da sua obra “Amor e Ódio”[26], porque mais centrada na Etologia Humana que a obra de Lorenz, seu mestre e predecessor.
Sem dúvida que o eixo central da investigação da Etologia humana está na compreensão das dinâmicas da agressividade. A este propósito, já é antiga a discussão sobre a natureza humana: se inicialmente boa e depois pervertida pela civilização, como defendia Rosseau com o seu “bom selvagem”; se de raiz má e posteriormente condicionada para o bem através da educação e da cultura ou da repressão, na visão de homens como Thomas Hobbes (no séc. XVII) ou Huxley (séc. XIX). Eibesfeldt situa-se desde logo num plano um pouco diferente, intermédio e misto, pois defende que “tanto o comportamento agressivo como o comportamento altruísta são pré-programados através de adaptações genéticas que se processam ao longo da história das espécies e que, por isso, existem normas preestabelecidas para o nosso comportamento ético. Os impulsos agressivos no homem são equilibrados pelas tendências de sociabilidade e de cooperação, que também se encontram profundamente enraízadas”[27]
Depois de demonstrar exaustivamente a existência de um núcleo de capacidades e conhecimentos inatos e de comportamentos pré-programados no Homem e nos animais, o autor começa por sublinhar algumas vantagens da agressividade (seguindo as pisadas do seu mestre, que na obra “A Agressão” procurava mostrar para que é que o mal é bom..). Defende também que “muitos animais estão de tal modo pré-programados que reagem a certos sinais com tipos de comportamento agressivo (...) mas o comportamento de luta nem sempre é de tipo reactivo. A espontaneidade e o desejo de lutar, também comprovados nos animais socialmente inexperientes, leva-nos a concluir que existem mecanismos impulsivos inatos”[28].
No Homem, há seguramente diferenças culturais na expressão da sua agressividade mas ainda não foi apresentada prova convincente de que a um grupo humano faltem, por completo, formas de agressividade. Ao invés, todos eles “glorificam-na”, por exemplo, nas lendas e nos mitos heróicos, bem como nos animais simbólicos da agressividade – sempre presentes na heráldica.
Numa outra abordagem é referido a importância dos jogos de luta, em que há um fundo de prazer, “parecendo ser um modo de libertar impulsos agressivos, enquanto a acumulação da agressividade é sentida como tensão desagradável”[29] . O autor sublinha que a impossibilidade de libertar a agressividade conduz a uma acumulação que pode levar a formas mais perigosas de a expressar. Particularmente importante é a sinalização de que “uma situação de activação de estímulos bastante eficaz é a ameaça efectiva ou imaginária de que é alvo o grupo sobre o qual ela incide. Ela desperta fortes emoções no grupo e os demagogos sempre souberam compreender o modo de activar esta espécie de entusiasmo para depois o colocarem ao seu serviço”[30].
Um outro eixo de avaliação da expressões de agressividade é o desenho das hierarquias. Defende-se que estas representam um fundamento da ordem social e um controle da agressividade e que “são as qualidades sociais que decidem sobre a posição hierárquica e não apenas a agressividade daquele que quer conquistar uma posição. A posição hierárquica depende da aceitação dos outros membros do grupo e nunca é concedida a um animal que seja exclusivamente agressivo”[31].
Toda estas expressões de agressividade têm um condicionamento – ainda que não uma total supressão – através da ligações sentimentais entre seres humanos. Aqui Eibesfeldt converge com Freud que defende que tudo aquilo que produz pontos comuns significativos entre os homens estimula sentimentos de comunidade, ou seja, de identificação. E esta inibe a agressividade.
Mas existem outros inibidores da agressividade, como, por exemplo, os gestos de submissão, que através do desamparo, da fraqueza e do comportamento infantil provocam a compaixão. Mas, seguramente, o mais importante gesto inato de apaziguamento é o sorriso. Universal, com significado comum e um resultado idêntico em todas as circunstâncias: o apaziguamento. Também as características infantis têm esse mesmo efeito, que radicam nas relações pais-filhos. Citava-se a título de exemplo, o gesto, entre dois adultos, de um que consola outro que chora, tem quase sempre a expressão idêntica à que a criança faria no peito da mãe: esconde o rosto no peito daquele que o consola.
Mas valerá esta inibição da agressividade para todos os seres humanos, conhecidos e desconhecidos? Lorenz defende que não. Por natureza, somos menos inibidos na agressividade para com desconhecidos. Para com os estranhos somos, normalmente, menos tolerantes. No entanto, a tendência natural empurra-nos no sentido de tornar próximo o desconhecido. O autor sublinha que “ a predisposição de estabelecer um laço de união com o próximo é na realidade tão grande que há sempre o “perigo” de dois grupos inimigos poderem estabelecer laços de amizade entre si, sempre que permaneçam muito tempo juntos”[32]. Isto era evidente, por exemplo, nas trincheiras inimigas na Primeira Guerra Mundial, onde a certa altura os soldados inimigos já trocavam cigarros. Nessa altura, deixavam de estar aptos a combater.
Nesta “história natural da agressividade” tem um papel relevante a invenção das armas. Estas, quanto mais distantes operam, mais anulam os inibidores da agressividade por tornam mais anónimas as vitimas. Mas, diz Eibesfeldt, que a “capacidade do homem rotular negativamente é, talvez, mais terrível que a própria descoberta das armas(..) o processo de transformar os adversários em seres odiados não consiste apenas em marcá-los como monstros mas também em despertar medo e desconfiança”[33]. Mais á frente, o autor reforça esta preocupação, alertando para que a capacidade de desumanizar o seu semelhante, torna possível eliminar inibições inatas, nomeadamente conduzir à eliminação da compaixão. E nestas acções, os mass media podem ser vitais.
Um outro vector a ter em conta passa pela obediência e pela lealdade. Embora aparentando serem valores em “queda”, várias experiências descrevem uma “tendência inata para obedecer” que em determinadas circunstâncias pode ser perigosa. Por outro lado, a fidelidade é outra disposição que se presta facilmente a manipulações. Sobre isto, Eibesfeldt afirma: “não devemos ceder necessariamente a todas as nossas inclinações inatas, sobretudo no que diz respeito à obediência e lealdade pois são duas disposições que são presa fácil da manipulação dos demagogos”[34]
Note-se que para além dos inibidores da agressividade já referidos podemos detectar também oponentes da agressividade, como o são todos os rituais vinculadores. Desde logo, se destacam nesta função, os rituais de saudação. Estes fomentam ou mantêm um vínculo ou apaziguam a agressividade e estendem-se até à despedida. Se alguém não saúda em ambientes familiares isso desencadeia de imediato agressividade. Á saudação somam outros oponentes da agressividade como a transmissão de ofertas de comida e o comer juntos, o abraço, a carícia/contacto corporal, ou a dispensa de cuidados sociais de higiene.
Por outro lado, “é absolutamente possível que tipos de comportamento infantil possam fazer parte do reportório comportamental dos animais adultos, que os utilizam quando se trata de estimular o apaziguamento ou de procurar um bom acolhimento.”[35]. Aliás, um autor citado na obra de Eibesfeldt[36], Fremont-Smith, interrogando-se sobre que interesse comum seria capaz de unir os grupos humanos para além das suas contradições chegou à que seria a protecção das crianças.
Registe-se também a importância de instintos vinculadores como a necessidade de protecção, o medo ou a fuga. Quando estes instintos são colocados em alerta por ameaça relevante, dá-se a desinibição da agressividade.
Um dos aspectos mais curiosos - e mais polémicos - das teses da Etologia, sobretudo decorrente das experiências de Lorenz, é a correlação do amor com a agressividade. Diz este autor que “o vinculo pessoal do amor nasceu em muitos casos, sem dúvida, da agressividade intra-específica através da ritualização de um comportamento de ataque ou de ameaça reorientado.”[37]. “O amor é um filho da agressividade”, conclui.
Também o vinculo sexual é estudado pela Etologia, percorrendo, agora, caminhos diversos da Psicanálise freudiana. Enquanto esta corrente deduz todas as relações sociais, das relações sexuais, a Etologia não vai tão longe, embora se reconheça que “nos seres humanos o vinculo do sexo através do comportamento sexual desempenha um papel extraordinário, sem paralelo no reino animal”[38] .
Num outro registo, destaca-se a solidariedade de combate, que resulta de um perigo comum que reforça a coesão de grupo, sendo significativo que muitos dos símbolos que mantêm coeso um grupo anónimo são agressivos. O autor nota que aqueles que saúdam em conjunto sentem-se vinculados como comunidade de luta (numa manifestação, por exemplo) ou ainda aqueles que riem juntos sentem-se vinculados entre si através desta hostilidade ritualizada que o “alvo” sente como atitude agressiva.
O penúltimo capítulo de “Amor e Ódio” assume uma importância crucial ao debruçar-se sobre as consequências da evolução desde o agrupamento individualizado para a sociedade anónima. Se era certo que no seio de uma comunidade individualizada predominava o vínculo da confiança, com o desenvolvimento da civilização, a comunidade vai-se transformando progressivamente num sociedade anónima, onde os mesmos traços de agressividade que eram inibidos pelo vínculo de conhecimento pessoal se tornam agora verdadeiramente ameaçadores porque os seus portadores são estranhos que convivem no mesmo espaço. Isso exigiu importantes adaptações entre as quais se situa a redução das diferenças e das “zonas de atrito” e a vinculação por meio de símbolos e interesses comuns. E para criar esse vinculo de proximidade na esfera global de milhões de anónimos, os media dão um extraordinário contributo. Nomeadamente, porque nos falam diariamente da existência de outras pessoas e dos seus problemas, tornando-os próximos, actuando assim no sentido de reduzir a desconfiança, e dando maior peso às forças vinculadoras.
Exploração de pistas de influência da Etologia na releitura das teorias da comunicação
O que de mais interessante a Etologia traz a uma releitura contextual das Teorias da Comunicação é, sem dúvida, a necessidade de considerar sempre, em qualquer modelo, um núcleo comum de comportamento humano – diríamos, arriscando, expressão da “natureza humana” – que está sempre presente e é tendencialmente igual. É evidente, no entanto, que a complexidade humana acrescenta a esse núcleo um conjunto de variáveis individuais, aprendidas e embebidas num determinado contexto cultural, que dão a diversidade conhecida. A combinação de núcleo central (inato) e de variáveis periféricas (aprendidas) constitui a identidade humana, ponto de partida e de chegada dos processos comunicativos.
Vejamos, pois, alguns exemplos de aplicação desta tese, enquadrada em diferentes modelos das teorias da comunicação.
Quando relemos a teoria hipodérmica, iluminada pelos conhecimentos da Etologia, verificamos que a sua obsolescência não é absoluta. Se considerado parcialmente – em determinadas matérias, num determinado tempo e num determinado espaço – o behavourismo, que sustenta a t. hipodérmica, encontra reforço na etologia. Uma comunicação que saiba desactivar os inibidores da agressividade, pode condicionar efectivamente uma resposta semi-mecânica do receptor. Tipicamente, a gestão do medo e da desconfiança, a rotulagem do estranho como ameaça ou a inibição da compaixão são tendências evidenciadas em circunstâncias como uma guerra ou uma epidemia. A gestão mediática do pós-11 de Setembro na América (que sustentou as intervenções no Afeganistão e no Iraque) é um exemplo que evidencia uma potencial manipulação sustentada no reflexo condicionado do medo e da desconfiança.
Igualmente, quando passamos à teoria empírico-experimental, podemos usar, com proveito, a grelha que as observações da etologia nos oferece. É aliás, pela sua natureza, o modelo que melhor convive e dialoga com os contributos da etologia pois considera com relevo os processos psicológicos que no receptor influenciam a captação e interpretação da mensagem. Ora este diversidade possível por um ecoar diverso, em diferentes receptores, ganha com a etologia um núcleo de situações comuns e universais a todos os receptores: ou seja, apesar dos diferentes processos psicológicos, em algumas mensagens expressas não há diferença na interpretação dos receptores. Por exemplo, a etologia sinaliza que o sentimento de protecção da criança é inato e universal. Em paralelo, também o é a receptividade fortemente negativa da notícia de crimes sobre crianças, que são particularmente – e sempre - penalizadas junto da opinião pública. São “crimes sem perdão”, como se visualiza no caso da pedofilia ou do assassinato de crianças. Nestes casos, o processo psicológico do receptor é sempre igual.
Na abordagem dos efeitos limitados, que introduz o estudo da audiência e do seu contexto, a adaptação de conceitos da etologia também é interessante. Desde logo, porque colocando como central os efeitos sobre a audiência numa perspectiva contextual em relação às dinâmicas sociais envolventes, encerra em si mesmo, em potencial, todo o conhecimento etológico. Em certa medida, o etograma, (pag.8) representa uma das componentes desse contexto social determinante para a eficácia da comunicação. Além disso e numa abordagem mais pontual, podem acrescentar-se outras análises. Por exemplo, na definição da influência, para a qual se introduz abordagem dos efeitos limitados a função dos lideres de opinião e da comunicação em dois níveis, é útil ter em conta o que se define na Etologia, por um lado, como papel das hierarquias como controlador da agressividade, por outro lado, a referência que se faz ao perigo da tendência inata para a obediência e da lealdade, ao líder e ao grupo, poderem constituir um desinibidor da agressividade.
Ainda dentro das abordagens que “casam” bem com a etologia destaca-se a funcionalista. Também neste eixo, em que se focam as funções, os usos e as gratificações do processo comunicativo parece evidente a existência de uma componente (função/uso) de gestão da agressividade, quer na sua inibição, quer na desinibição, somando-lhe ainda uma componente de libertação da agressividade. Por exemplo, pela capacidade de desumanizar ou, ao invés, de tornar próximo, cada processo comunicativo pode em si mesmo ser estimulante ou inibidor da agressividade, respectivamente. É também curioso, num outro registo, Eibesfeldt descrever como libertadores de agressividades vários espectáculos mediáticos e dizer que “outro meio de libertar agressividade consiste em ver um filme violento(..) o homem gosta de libertar desse modo os seus impulsos agressivos. Os filmes são geralmente realizados de modo a activarem primeiro a agressividade do espectador que posteriormente é libertada, por exemplo, na figura do “mau da fita””[39].
Sem dúvida, o maior choque conceptual dá-se entre a teoria crítica e a etologia. Por natureza, a teoria crítica tem uma enorme repulsa em considerar inatos, quaisquer elementos comportamentais. A sua “fé” na razão humana e a sua desconfiança perante o que pode parecer ser semente de um certo determinismo social, tornarão difícil qualquer ganho na releitura da teoria crítica a partir da perspectiva da etologia. E esse é provavelmente um dos seus pontos fracos: um voluntarismo que ignora alguns pilares básicos da “natureza” humana, que escapando à razão, não deixam, por isso, de existir. Apesar de tudo, e numa perspectiva de reforço de alguns aspectos da análise da teoria crítica não será inútil voltar a sublinhar o que já foi referido a propósito da teoria hipodérmica, no que se refere a condições favoráveis à manipulação.
Regressando a maior proximidade conceptual à etologia, a teoria cultorológica de Morin e os “cultural studies” de Birminghan já terão aí uma ferramenta mais confortável, dado o relevo que a primeira dá à dimensão antropológica e à perspectiva abrangente da cultura enquanto expressão de todas as práticas sociais e das suas interacções que a segunda nos propõe.
Neste mesmo registo de sintonia e de convergência se verifica o diálogo entre a etologia e a abordagem comunicativa, em particular a semiótica-informacional. O foco escolhido do código, que torna (ou não) comum significante/significado encontra na etologia um notável reforço. Sem dúvida, que o conhecimento que esta aporta, per si, evidencia a actualidade da tese semiótica-informacional, nomeadamente, porque destaca uma lógica comunicacional baseada em signos, expressos e entendidos - inconscientemente - por emissores e receptores que partilham o mesmo código. O interessante a transpor da etologia para esta teoria comunicativa está também aqui: a relevância dos processos comunicativos não dependentes da vontade ou da consciência e que representam elementos determinantes na relação humana. E isso só acontece porque há um código comum que permite a transparência e dispensa a intenção. Enquanto “face oculta da comunicação”, a consideração desta componente tem vindo a ganhar atenção pois situa-se no perigoso terreno do sub-liminar e potencialmente manipulável. A obra de Eibesfeldt está cheia de exemplos sistematizados. Por exemplo, a utilização sistemática pela Walt Disney - o Bambi é um excelente modelo - de características infantis nos “objectos-estímulo” que desencadeiam respostas automáticas e extremamente poderosas: cabeça grande em relação ao tronco, testa alta e saliente, bochechas insufladas, extremidades pequenas e arrendondadas, boquinha de mamar, etc. Estas condicionam uma adesão imediata aos bonecos que as apresentam. Ora, se este mecanismo é relativamente irrelevante no caso, já o mesmo não se pode afirmar em relação a outras aplicações no domínio da publicidade ou do marketing político.
Mas regressar ao modelo teórico, em síntese, o importante é contemplar, qual iceberg, que o processo comunicativo corre acima e abaixo da linha de consciência, graças um canal que transmite uma mensagem codificada que, queiram ou não, os emissores e os receptores enviam e/ou compreendem.
Em conclusão, e sublinhando de novo o caracter exploratório da abordagem que aqui propomos, parece claro que a releitura das várias teorias da comunicação tem muito a ganhar com os contributos de outros ramos das Ciências que lhe podem providenciar importantes ferramentas e conhecimentos para se rever. Por outro lado, o cruzamento da etologia com algumas das teorias clássicas da comunicação evidencia aspectos cuja interpelação faz sentido. A influência dos comportamentos inatos, constituintes do etograma humano parece, pois, incontornável nos processos comunicativos e a sua aplicação aos modelos resulta num incremento da consistência e da coerência dos modelos referenciais. E isso é mais evidente para uns do que para outros.
Bibliografia
Wolf, Mauro, “ Teorias da Comunicação”, Editorial Presença, 1987
Eibesfeldt, I. “Amor e Ódio”, Bertrand Editora, 1970
Lorenz, Konrad; “A Agressão – Uma história natural do Mal”, Relógio d`Água., 1992
[1] “ o modo de pensar o papel da comunicação de massa parece estar estreitamente ligado ao clima social que caracteriza um determinado periodo histórico: às modificações desse clima correspondem oscilações no comportamento acerca da influência dos mass media” in Wolf, M. “Teorias da Comunicação”, Presença, 1987, pag. 53 [2] Wolf, Mauro “ Teorias da Comunicação”, Editorial Presença, 1987 [3] ibidem, pag. 18 [4] ibidem, pag. 21 [5] ibidem, pag. 23 [6] ibidem, pag. 25 [7] ibidem, pag. 29 [8] ibidem pag. 40 [9] ibidem pag. 43 [10] ibidem pag. 43 [11] ibidem pag. 47 [12] ibidem pag. 57 [13] ibidem, pag. 61 [14] ibidem, pag. 71 [15] ibidem, pag. 73 [16] ibidem pag. 79 [17] ibidem pag. 82 [18] ibidem pag. 87 [19] ibidem pag. 91 [20] ibidem, pag. 94 [21] ibidem, pag. 96 [22] ibidem, pag. 108 [23] ibidem pag. 111 [24] ibidem pag. 117 [25] “Konrad Lorenz - Zoólogo austríaco, nasceu em 1903 e morreu em 1989. É considerado o fundador da etologia moderna. Partilhou o Prémio Nobel da Fisiologia e da Medicina, em 1973, com o alemão Karl von Frisch e o britânico Nikolaas Tinbergen, pelo estudo do comportamento animal através de métodos comparativos. As suas ideias contribuíram para uma melhor compreensão da forma como os padrões de comportamento podem ser relacionados com o percurso evolutivo.” In Diciopédia, Porto Editora, 2002 [26] Editado pela Bertrand Editora em 1970. [27] Eibesfeldt, I. “Amor e Ódio”, Bertrand Editora, 1970; pág. 27 [28] ibidem, pag. 95 [29] ibidem pag. 100 [30] ibidem pag. 106 [31] ibidem pag. 110 [32] ibidem pag. 125 [33] ibidem pag. 124 [34] ibidem pag. 130 [35] ibidem pag. 141 [36] ibidem pag. 180 [37] ibidem pag. 150 [38] ibidem pag. 180 [39] ibidem pag. 101
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