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  • Writer's pictureRui Marques

Ainda a memória da tragédia, com uma chave de leitura para o futuro

Sobre os acontecimentos no Centro Ismaelita/Fundação Aga Khan, importa não esquecer a homenagem às vitimas, mas também as lições que podemos tirar para interpretar um caso como este, sem abdicar da firmeza nos princípios e nos valores.



1. Aconteceu um crime.

Perante o assassinato de duas pessoas e os ferimentos de outras três há que, em primeiro lugar, ser claro na qualificação do que se conhece. Tratou-se de um crime ignóbil, inequivocamente condenável, em qualquer circunstância, seja quem for o seu autor.

Porém também começa a ser claro - segundo a PJ - que não se tratou de um ato de terrorismo. Não havia antecedentes, sinais de radicalização, reivindicação credível do ato e nenhuma intencionalidade plausível nas vítimas a atingir.


Neste quadro, num país civilizado, só uma coisa pode acontecer: confiar na justiça, para que funcione plenamente, no respeito das regras do Estado de Direito, desde a investigação até à acusação e aplicação de uma pena justa. A justiça terá os seus tempos mas só nela e através dela se poderá afirmar a civilização.


2. Aconteceu uma tragédia.


Esta foi uma enorme tragédia. As duas vidas que se perderam eram preciosas. Como qualquer vida humana. Mas, no caso específico da Mariana e da Farana, havia este compromisso cívico de serviço aos refugiados, que torna esta tragédia ainda mais incompreensível. Neste momento, é essencial prestar homenagem ao seu legado e ao seu exemplo e ser solidário com a dor das suas famílias. E essa honra que lhes é devida passa, com certeza, por prolongarmos em nós o seu exemplo de exercício humanista.


Há também uma tragédia que se abateu sobre uma comunidade. Os ismaelitas, que deram exemplos notáveis de acolhimento e integração de refugiados, sofreram este duro golpe que seguramente os deixa perplexos. Como foi possível, para quem fazia o bem, ver isto acontecer no seu seio? É-lhes devida uma solidariedade inequívoca, expressa no respeito pelo seu trabalho e no ânimo para que continuem, sem hesitações ou desfalecimento. Finalmente, esta tragédia atinge brutalmente três crianças, que depois de terem perdido a sua mãe de uma forma horrível, veem-se agora apartados do seu pai e com um estigma associado à sua história. Cuidar destas vítimas vai ser também essencial.


3 . Uma mão cheia de interrogações.


Algo que não podemos ignorar é o muito que não sabemos sobre o que aconteceu. O que se passou na cabeça daquele homem para que fosse capaz de um ato hediondo, num quadro de uma instituição que o estava a apoiar e a cuidar dos seus filhos? Falhou algo que se poderia ter previsto e/ou prevenido? Houve sinais que não foram devidamente identificados? O que se passou verdadeiramente?


Não sabemos. E precisamos de tempo para perceber melhor o que se terá passado. Não nos podemos precipitar. É preciso dar tempo ao tempo e não fazer julgamentos infundados. As investigações que começaram irão ajudar-nos a perceber melhor. A prudência será boa conselheira e a paciência para esperar até se apurar a verdade será muito sábia.


Mas as interrogações não nascem só do que não sabemos. Também o que sabemos nos deixa perguntas. Como é possível que alguém explore estas tragédias, associadas a este crime, para fazer guerra política, sem escrúpulos, nem vergonha? Como é possível que alguém explore medos e fantasmas para se afirmar a qualquer preço? Como é possível se faça demagogia em cima do sofrimento das vítimas?


4. Firmeza nos valores, certeza nos princípios.


No meio de tempestades como esta é fundamental uma coisa: há que não hesitar um milímetro nos valores que nos movem e nos princípios que nos sustentam. Reafirmar o dever civilizacional de acolher famílias de refugiados que fogem da guerra e do horror de situações como a que se vive no Afeganistão (como noutros contextos) é essencial. Este crime e estas tragédias não nos podem abalar nos nossos valores e um episódio como este não nos deve fazer mudar o que está certo. Pelo contrário, deve-nos reforçar na determinação de continuar a lutar por um mundo mais justo e mais humano, no qual o acolhimento de quem está em situação vulnerável se inclui.

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