Cada vez que cavamos o fosso entre "nós" e "eles" estamos em zona de risco. E acontece sempre da mesma maneira : identificar bolsas de ressentimento, cristalizar o seu sentimento de vitimização, criar um inimigo comum, lançar as sementes da revolta e começar a guerra
Pode parecer estranho este título. Porém, por aqui passa, desde sempre, a tragédia da humanidade. Filhos da mesma espécie, temos esta pulsão de buscar um sentido de pertença a um grupo, no qual encontramos segurança, defesa mútua e a força do coletivo. Esta marca está connosco desde que, ainda nómadas, nos começámos a organizar por famílias alargadas, por tribos ou por grupos. Essa realidade tem seguramente muitas vantagens, mas quando se cruza com o desejo de poder, de conquista ou de subjugação de alguém, desencadeia-se um processo muito perigoso.
Cada vez que cavamos o fosso entre “nós” e “eles” estamos em zona de risco. Essa criação de “Outros”, processo a que se chama de “Outrificação”, afasta-nos da nossa humanidade comum e abre brechas, por exemplo, para que se insinuem todas as dinâmicas de “bode expiatório”. De alguma forma, a cultura de “condomínio fechado”, de desconfiança e medo face ao “Outro” tem marcado crises recentes como a da chegada de refugiados à Europa, mas não é nova. Foi sempre por aí que entrou quem quer “acantonar” forças à sua volta, para vencer qualquer guerra ou para conquistar poder. Também aqui se aplica o “dividir para reinar”. Vimos isso com Hitler, mas não foi o único a fazê-lo. E acontece sempre da mesma maneira: identificar bolsas de ressentimento, cristalizar o seu sentimento de vitimização, criar um inimigo comum, lançar as sementes da revolta e começar a guerra.
No processo de “outrificação” raras vezes se fica pela simples enunciação de identidades e de diferenças entre “nós” e “eles”. O passo que surge como tentação seguinte é começar a retirar qualidades ao “outro”: menos capazes, menos inteligentes, menos trabalhadores, menos confiáveis... menos humanos. Rapidamente começamos a comparar o melhor do “Nós” com o pior do “Outro” e a ver “neles” o pior da humanidade. Emerge, então, no seu esplendor terrível, a desumanização.
David Livingstone Smith, autor das importantes obras Less than Human (2012) e On Inhumanity – Dehumanization and how to resist it (2020), mostra, de uma forma clara, a relação deste processo de desumanização com as páginas mais tristes da história da humanidade: escravatura, genocídios, perseguição de minorias, discriminação e racismo, entre muitos outros exemplos. Foi por que nos deixámos influenciar por processos de desumanização que fomos capazes de humilhar, maltratar, explorar e mesmo matar milhões de pessoas. Para resistir a este fenómeno, Smith propõe, com ousadia, pistas concretas. Entre várias, duas das mais surpreendentes passam por termos a consciência de que, por um lado, em qualquer um de nós existe, potencialmente, o impulso para desumanizar. Por isso, começar por nós o combate à desumanização ajuda. Por outro lado, desafia-nos a que não “desumanizemos os desumanizadores” para não protagonizarmos aquilo que queremos combater. Ao invés, incentiva-nos a perceber que essas dinâmicas, mais do que nascerem de um ódio abstrato, crescem a partir do medo, do desconhecimento e da manipulação e sinaliza que, se formos a essa raiz do problema, seremos mais eficazes no combate a todas as formas de desumanização. Exigente, sem dúvida.
Para consolidar um caminho de crescente humanização, sustentado no conceito de que “somos todos braços da mesma árvore” (Mandela) e na filosofia Ubuntu (“Eu só posso ser Pessoa através das outras Pessoas"), que nos apontam para a nossa comum humanidade, celebramos, a 16 de maio, o “Dia Internacional de Viver Juntos em Paz” (data proposta pela ONU), no Ubuntu Summit, com a presença de David Livingstone Smith, entre outros convidados especiais. A Academia de Líderes Ubuntu, que reúne membros em 58 países, procura concretizar esta visão, a partir da liderança servidora, da ética do cuidado e da construção de pontes, e desafia-nos a que possamos ser capazes de co-construir um grande “Nós”, plural e diverso, mas uno e coeso: uma só família humana, na qual todos, sem exceção, tenham lugar.
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