(reprodução de textos escritos pelo autor, em 1992, no decurso da Missão)
Esta é uma outra história. Um olhar com o coração. O desfolhar do passado recente antes que o pó comece a pousar sobre o que ficou.
Devagar, descemos à fase oculta desta Lua que, apesar de tudo, foi cheia. Percorremos momentos que ficaram esquecidos ou que nem sequer tiveram existência pública. Despertam as memórias e lembranças, dores e angústias. Ah... quantos obrigado! ficaram por dizer, quantas lágrimas por chorar, quantos nomes por chamar?!...
Terá valido a pena?
No chão, jaz um rosário de sucessos e consciências que dormem sem sobressalto. Mas a consolação da Missão cumprida não é suficiente. Timor já não pode voltar a ser só intenção ou lamento. Os que beberam deste cálice de sabor amargo não podem calar esta herança. E o destino está traçado para as vidas que um dia se cruzaram nos mares de Timor. Ficaram laços e cresceram responsabilidades para um caminho que não será breve nem fácil mas que é irrecusável.
Timor não nos vai deixar regressar ao suave descanso da apatia de quem tudo ignora. Timor, nas nossas consciências, não vai aceitar abstenções. Que cada um se ponha ao caminho...
5ª Feira, 27 de Fevereiro, LISBOA
Passaram já (só!) dois meses desde o primeiro sonho com o Lusitânia. Para trás ficaram as dificuldades da saída do navio de Lisboa e as tempestades no Mediterrâneo e no Suez. Em Lisboa, o último mês foi marcado pelo combate pelos dinheiros que continuamos a não ter, pelos convidados que tardaram em aceitar e pelas repetidas ameaças indonésias. Agora começa a contagem decrescente. Chega o primeiro participante estrangeiro: Jens Christian Elle, dinamarquês. Revelou-se um dos melhores. Depois foram chovendo outros. Somados aos portugueses, "pousam" na Estalagem dos Zimbros, junto ao cabo Espichel. As primeiras conversas ainda não chegam para quebrar o gelo.
Na retaguarda, entre quatro paredes, multiplicam-se os contactos telefónicos na esteira de um avião ora próximo ora distante. No final do dia, tudo parecia seguro. Mas continuávamos a trabalhar no arame... sem rede!
6ª Feira 28 de Fevereiro, CABO ESPICHEL e LISBOA
É sempre bom acordar no horizonte largo de um cabo. Mesmo quando este se transforma em Tormentas. Foi o caso.
Para o grupo (cada vez mais numeroso), o dia começava com a primeira duma série infindável de reuniões sobre a Missão. Aliás, este projecto deve ter sido a iniciativa com mais reuniões per capita... Na discussão é evidente, desde logo, a excessiva heterogeneidade do grupo. Estava detectado mais um quebra-cabeças.
A tarde tinha Belém na agenda e o Aeroporto da Portela no destino. Entretanto, nos bastidores, as coisas complicavam-se. O que parecia certo afinal não o era. Aviões, dinheiros, apoios, tudo treme. Sendo obrigado a estar sempre na tangente, mesmo à beira do abismo, correm-se grandes riscos. A Missão vai sobrevivendo graças a nervos de aço e a amigos de ferro. Mas desta vez não iriam chegar.
Partimos para a audiência com o Presidente da República (16 h) com um nó na garganta: seria possível reunir os meios necessários até às 19 h?
Enquanto o Dr. Mário Soares deseja bons êxitos e explica a posição de Portugal sobre Timor, o cenário cá fora complica-se ainda mais. Tudo marcado para as 19 h no aeroporto com a expectativa de sair entre as 22 e as 24 h e rebenta a "bomba": não foram reunidos os meios necessários!
Cai-nos o mundo em cima da cabeça. Chovem as críticas, sobem as pressões para declarações. Contra tudo e contra todos (mesmo contra nós próprios), decidimos não falar a "quente" porque a precipitação é a morte do artista do arame... Adiámos para conferência de Imprensa no dia seguinte.
Naquela altura só apetecia bradar contra um País que só sabe lamentar-se por Timor mas que perante uma acção concreta fica-se pelo apoio moral...
Mas de que valeria esse desabafo? De que valeria clamar contra os muitos que prometeram donativos generosos e depois se “esqueceram”? De que valeria?...
Os participantes não conseguem perceber o que se passa mas, por intuição ou simpatia, confiam na direcção da Missão. E dormem descansados.
Pela noite dentro preferimos o silêncio mediático e tentamos a solução (im)possível. Por milagre, e não só, faz-se luz a meio da noite: seria possível sair no dia seguinte. Não queríamos acreditar! Tínhamos envelhecido uns anos, naquelas horas...
Sábado, 29 de Fevereiro, LISBOA e MADRID
Que mais surpresas iriam marcar o novo dia? Com os últimos tempos aprendemos a esperar tudo. Do melhor ao pior.
Finalmente, ao fim da manhã, a última confirmação: sairíamos às 23h.55m.! Mesmo assim, enquanto não chegam os bilhetes, não acreditamos.
A anunciada conferência de Imprensa corre bem. Foi dura, como sempre. O Pais parece expirar de alívio, os críticos guardam a sua língua afiada para melhor ocasião e nas hostes da Missão o ambiente é de euforia. Pudera.
Ao jantar, segue-se o momento repetido da viagem até ao aeroporto. Lá, timorenses esperam-nos para um longo abraço. Na nossa lapela, ficam cartões "AMI HÓ IMI" (Estamos convosco) que não mais abandonaremos. Na rota dos símbolos, ramos de oliveiras, flores e tecidos timorenses. A responsabilidade continua a aumentar sobre os nossos ombros.Na plataforma do aeroporto, o avião espera por nós. É tempo de dizer adeus. Começava a odisseia dos ares.
Domingo, 1 de Marco, MADRID/ROMA/BANGUECOQUE
Madrid, 2h da manhã. Primeira escala. Aeroporto quase deserto. Começa o calvário para Eva (checa), Arapan e Reza (indonésios): enquanto a comitiva descansa um pouco no hotel, eles vêem-se obrigados a esperar no aeroporto por não ser autorizada a sua entrada no país. A cena repetir-se-ia em Banguecoque arrastando, aí também, Ma Tao, um dos nossos chineses. Enquanto alguns dormem umas escassas horas, o brasileiro Tasso faz "nascer", camisolas da Missão através de um engenhoso processo de impressão manual. O grupo ganhava mais um símbolo.
Pouco passa das nove da manhã e já estamos de novo no ar. Agora num 747 da Thai International, para percorrer o maior troço até Banguecoque. Pelo caminho, uma escala técnica em Roma. Por ironia, aparcamos ao lado de um 747 da Garuda - Indonesian Airlines. E eles aqui tão perto...
A viagem corre bem. Ou quase. Um dos convidados da Missão toma atitudes impróprias de crescente desintegração, ultrapassando o limite do aceitável. Perde a qualidade de convidado e fica pelo caminho.
2ª Feira, 2 de Marco, BANGUECOQUE
Banguecoque não foi à primeira. A razão oficial foi o nevoeiro. Mas alguns não hesitaram em desconfiar: porque razão havíamos sido desviados para o aeroporto militar de Utapau? O desenlace provou que não tínhamos razão para recear, mas a cena deixou evidenciar alguns nervos à flor da pele.
A chegada a Banguecoque acabou por se concretizar só a meio da manhã. As horas de espera no Airport Hotel proporcionavam uma nova reunião. A primeira com todos os participantes. Como sala de trabalho, foi-nos indicado o restaurante, espaço aberto e com circulação permanente onde os empregados (e não só) nem procuravam disfarçar a sua atenção ao que se dizia. Neste cenário, pouco havia a dizer. Mas as energias, as dúvidas e os receios tornavam o ambiente efervescente. Se não se encontrassem válvulas de escape, a "panela" poderia explodir a qualquer momento.
Cumpria-se a previsão de que o principal perigo de insucesso da Missão não eram os indonésios, mas a coesão do próprio grupo, na sua componente internacional. Felizmente, os estudantes portugueses constituíam uma delegação perfeita, apta a aguentar todos os balanços e embates, com sabedoria e paciência. Mas não foi fácil.
Depois do jantar, de novo, avião. Agora, o salto até Sidney. No check-in, fomos insistentemente fotografados por um polícia que, calmamente, gastou vários rolos. O nosso álbum de família chegaria no dia seguinte, certamente, aos indonésios. A viagem revelou-se produtiva no decréscimo das tensões. Conversas aqui, conversas ali, grupos de trabalho para isto e para aquilo, enfim: o grupo mexia-se. Demais, segundo os mais conservadores.
Nos jornais tailandeses, "Banguecoque Post" e "The Nation", o Lusitânia é notícia. O Peace boat, como aqui é chamado, parece já ser familiar aos tailandeses e serve de argumento para se falar de Timor. É um momento de euforia para a Missão...
3 a Feira, 3 de Março, SIDNEY
Finalmente na terra dos cangurus!
No aeroporto, uma bateria de repórteres "ataca" a Missão. Alvos preferenciais, o porta-voz, António Ravara, e o principal convidado, Ramalho Eanes. Ambos com nota máxima. O António, aliás, viria a revelar-se como um dos esteios fundamentais da Missão. Em Sidney, com o Loren (americano) e o prof. Barbedo, animou uma das mais importantes reuniões destes dias Em debate, a estratégia e a táctica da Missão. Começando do zero, como se nada estivesse pensado. "O poder caiu à rua", bradavam os mais receosos de tanta participação. Mas às vezes, para dar dois passos em frente, é necessário dar um atrás...
Ao jantar, celebrou-se em família o aniversário do Pedro Soares, um aveirense de peso, que deu à Missão graça e organização. Com esta festa (e muitas outras), o grupo ganhava em crédito e solidariedade. Cimentava-se uma relação quase indestrutível que valeria ouro nos momentos de crise.
4ª Feira, 4 de Março, SIDNEY e DARWIN
Toque de alvorada às 4h 30m! São os ossos do ofício, exclamam alguns procurando consolação para o inconsolável. … o quarto dia de viagem. Já saturados de bagagens, aeroportos e aviões, iniciamos o último troço: Sidney-Darwin, com escala e mudança de avião em Brisbane.
Em Darwin, a recepção é entusiasta. Por uns momentos (breves, infelizmente), os timorenses parecem esquecer as suas profundas divisões e esperam-nos conjuntamente no aeroporto. Alguns dias antes, no culminar duma grande tensão, tinha sido possível conjugar dois programas antagónicos para a nossa estadia: por um lado, a Associação Cultural Lafaek; por outro, o Clube Timorense-Português de Darwin.
"Darwin - Out Back Austrália". Assim se definem os naturais. Ou seja, habitantes do fim do mundo. Por alguma razão, foi este o berço do último projecto de Wim Wenders, "Until the end of the world". Aqui, avisavam-nos, todos os cuidados são poucos. Demasiado perto da Indonésia, num ambiente político claramente favorável às relações do petróleo, pressentiam-se inimigos por todo o lado. Desconfiava-se dos outros hóspedes do Mirambeena Hotel, evitava-se andar sozinho à noite, tropeçava-se nas de férias para nos receberem, e uma certa anarquia que confundiria seguramente os indonésios.
O dia esgotou-se com mais reuniões. Com um universo maior ou menor, com mais ou menos reserva, estes meetings serviam para aliviar tensões numa catarse colectiva de expulsão de fantasmas ou, noutros casos, para fazer crescer as preocupacões da direcção da Missão. Felizmente, as noites eram refrescantes.
5ª Feira, 5 de Março, DARWIN
Os grupos acordam com uma fúria de trabalho. Levam tudo à frente. A sala de Imprensa torna-se um formigueiro difícil de gerir. Os choques multiplicam-se e, numa situação de stress, transformam-se rapidamente em crises. … tempo de saber "desminar" o terreno, desatar nós, anular agitações.
Alguém descobre um dos poisos preferidos destes dias: o Sizzler. É um verdadeiro achado. Basta imaginar um restaurante onde se somam qualidade, quantidade, baixo preço e bom gosto... e temos o Sizzler. Em Portugal, infelizmente, não iria longe...
A tarde, traz a novidade da oferta do Dr. João Carrascalão, irmão do governador de Timor e importante dirigente da UDT, para viajar connosco no Lusitânia. A resposta fica para depois.
Entretanto continua a chover informação do interior de Timor. Ao milímetro, conhecemos os movimentos dos militares e os preparativos dos timorenses. No ar, a convicção de que os indonésios ainda não decidiram qual das opções vão tomar. Por um lado, têm preparado todo o cenário para nos receber (desde as viaturas para nos transportar até às manifestações contra para nos humilhar); por outro, exercitam os seus meios navais no mar de Timor: 14 navios, um terço da esquadra de guerra Indonésia. Ainda tudo pode acontecer. Começam a surgir alguns traços de pânico aqui e ali.
A primeira das festas acontece nas instalações de um estádio de futebol e é oferecida pela Associação Lafaek. Genuína, sentida, transbordante.
O ponto culminante chega com a entrega à Missão dum Tais (tecido típico timorense) feito por estudantes timorenses, numa prisão indonésia: "Muito Obrigada pela Sua Visita a Timor Leste", é a mensagem bordada naquele pedaço de pano que é colocado aos ombros do director da Missão por uma criança de 4 anos. Enquanto uma velha mulher timorense faz ecoar um cântico, numa voz que vem do fundo da alma de um povo, a sala inunda-se em lágrimas incontidas. Ai, Timor...
6ª Feira, 6 de Março, DARWIN
Mais um dia em Darwin. Começa a ser urgente partir. Chega a confirmação de que o Lusitânia se encontra a dois dias de viagem. Recepção marcada, pois, para Domingo depois do almoço.
A temperatura sobe no seio do grupo. Avoluma-se a hipótese duma desistência em massa dos estrangeiros. Estão desconfiados e temerosos.
É dia de conferência de Imprensa. Uma mesa imponente impressiona os jornalistas australianos: para além de António Ravara e Nick Wood, porta-vozes principais, marcam ainda presença um americano, um australiano, uma canadiana, uma japonesa, um indonésio, um timorense e um cabo-verdiano. Fica desmistificada uma das acusações mais usuais dos últimos dias: a Missão afirma-se verdadeiramente internacional.
As pressões continuam a subir. O governo australiano desaconselha vivamente os seus cidadãos a participar numa Missão que, segundo Gareth Evans, apresenta riscos graves para a segurança dos que embarcarem.
Resultado imediato, a desistência de vários meios de comunicação social australianos. O Canadá manda um representante do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros para demover os três canadianos de participarem na Missão. Os governos grego e brasileiro tomam posições idênticas. As hostes tremem mas não caem.
A noite oferece mais uma festa, bem diferente da anterior. É sobretudo a festa de emigrantes, que se entusiasmam com a presença duma lusa delegação. As capas e batinas do Fernando Guerra e do Diogo Vasconcelos fazem vibrar as cordas da saudade amplamente comemorada com comida tipicamente portuguesa e bebidas que fizeram 20 000 km para aqui chegar.
No regresso, uma paragem para ver cangurus. Obrigatório e indispensável!
Fica a impressão de que afinal são mais pequenos do que imaginávamos.
No centro desta reserva, uma antiaérea gigantesca da 11 Guerra Mundial, hoje sala de visitas do heroísmo australiano. Talvez fosse o local ideal para construir um memorial aos milhares de timorenses que tombaram para que a Austrália não fosse invadida pelos japoneses... e para chorar os remorsos de nem um soldado australiano ter socorrido Timor depois da invasão Indonésia. Um dia, a História vigar-se-á.
Sábado, 7 de Março, DARWIN
Hoje é mais um dia D. "D" de decisão.
Depois de um árduo dia de discussão do grupo de cenários, chega o grande momento da decisão: embarcar ou não, eis a questão!
A discussão no grupo de trabalho revelara-se polémica mas produtiva. O ponto crítico centrava-se na decisão de, no caso de ser possível, ir ou não a Dili. Entre nós, alguns defendiam que entrar em Dili representaria cair na armadilha indonésia e poderia ser uma catástrofe para os interesses timorenses. Outros, tomavam uma posição inversa, havendo até quem sugerisse uma tentativa de furar um eventual bloqueio. Depois de ouvidas todas as opiniões, a direcção da Missão apresentou as suas opções perante os vários cenários para que cada participante pudesse decidir em consciência e liberdade o seu embarque no Lusitânia.
Em linhas simples, e considerando que a decisão final competia ao comandante do navio e não à direcção da Missão, as orientações seriam:
1) em caso de bloqueio, o Lusitânia não deveria tentar furar, visto a segurança dos participantes ser um valor da máxima importância. Além disso, existiam informações acerca de cisões entre o poder político e os militares indonésios, o que poderia favorecer uma atitude violenta destes para pôr em causa, internacionalmente, o presidente Suharto.
2) no caso de não haver bloqueio, avançar até Díli desde que fossem respeitadas algumas condições, como o não pedido de vistos, a entrada de todos os jornalistas e a possibilidade de uso dos meios de telecomunicações.
Definitivamente, os dados estavam lançados. Os portugueses e alguns estrangeiros não hesitam um segundo e decidem de imediato. Preenchem o famoso termo de responsabilidade que inclui também um parágrafo em que se comprometem a aceitar, em todos os momentos, as decisões da direcção da Missão. Mas há quem prefira a calma do sono para gerar a decisão.
Domingo, 8 de Março, DARWIN
Para trás, ficaram horas de discussão, momentos de dúvida e tempos de perturbação. Em terra, vão ficar aqueles que o medo, o dever de consciência ou a obrigação profissional assim o determina. São poucos, afinal. Para os que desistiram à última hora, não há caça às bruxas, olhares de lado ou críticas veladas. Mesmo que alguns as merecessem, sobrepõe-se este inestimável valor que é o respeito pelo exercício da liberdade de cada um. O grupo atingiu, enfim, a plena maturidade.
Na catedral, celebra-se missa. Missa dominical, que é também a porta de entrada para a Missão. Pelo menos, para alguns. Do momento, retemos dois sinais.
Antes da celebração, enquanto esperávamos, foi baptizada uma criança Indonésia. Filha do mesmo Deus; irmã, portanto. Cai por terra, a última chama de ódio. A Missão é, cada vez mais, um apelo à Paz.
Mas outro sinal fica também. Uma imprudência na homilia abre novas feridas na comunidade timorense. As palavras são facas que cortam quem as não sabe usar.
Somados, estes sinais talvez dessem qualquer coisa como "sede simples como as pombas, mas espertos como as serpentes".
Depois do tradicional almoço no Sizzler, um momento grande: o Lusitânia ia, finalmente, chegar a Darwin. A animação crescia. No cais, timorenses e participantes na Missão, não escondiam emoções. Alguns, só agora acreditavam que existia mesmo um navio! De todas as boas-vindas, uma muito especial: a dos aborígenes, os verdadeiros australianos. A sua solidariedade com a causa timorense é visível. Entre os pobres é mais fácil ser solidário.
Definitivamente, a partida fica marcada para o dia seguinte. Tudo está a postos. Chegamos à recta final...
2ª Feira, 9 de Março, DARWIN e LUSITÂNIA EXPRESSO
É tempo de partir. Deixar o cais seguro e cumprir um destino, uma missão. Ir até ao fim, lutar até ao limite da força, é o desafio no horizonte. Mas tudo aponta para que o fim esteja à entrada das águas territoriais de Timor.
O dia abre com mais uma conferência de Imprensa. O Lusitânia é agora o cenário de todos os acontecimentos. No centro das questões, o comandante do navio e o porta-voz da Missão. Acrescem as contribuições dos principais convidados australianos e portugueses. Sem novidades.
Chega a hora da partida. No navio, estão já seis toneladas de provisões geridas com toda a eficácia pelo Pedro Soares. Os serviços de Emigração e de Alfândegas cumprem cuidadosamente o seu papel: nem excessos, nem facilidades. Assim se cumpria a previsão que as autoridades australianas não teriam qualquer margem de manobra para boicotar a Missão, pois tal facto teria pesados custos políticos internos.
De repente, o céu abre-se. Quais cataratas, as águas encharcam até aos ossos. Mas ninguém parece incomodado com esta chuva diluviana. Lá fora, canções e slogans não esmorecem. Dentro do Lusitânia, duas pedras na engrenagem vão atrasando a partida. O insuportável homem do Canal 7 australiano não tem o passaporte em dia e a Missão não tem todo o dinheiro necessário para cumprir as condições postas pelo armador.
Telefonemas, contactos, telexes e faxes preenchem novas horas de angústia. Com todos os participantes embarcados, passados todos os obstáculos burocráticos corríamos o risco de não poder sair pela razão do costume. E espantoso como esta Missão se vai fazendo permanentemente com a corda na garganta. Se fossemos pessoas razoáveis, sensatas e prudentes nunca teria havido Lusitânia... assim lá vamos empurrando a missão mas também garantindo trabalho certo para os cardiologistas daqui a uns anos.
São 18 h 55 m. Finalmente, luz verde para partir. Mais uma tempestade passada. No horizonte, uma visão paradisíaca. Entre uma trovoada longínqua e um pôr-do-sol magnífico, soam três estridentes apitos do Lusitânia. No cais, as últimas energias fazem correr alguns metros até ao limite possível. Canta-se o hino da Missão e também o hino Nacional.
É o último adeus.
Dentro do Lusitânia, qualquer semelhança com um cruzeiro é piada de mau gosto. Somos nós que temos que cozinhar, servir as refeições, lavar e limpar a louça, limpar o chão, enfim... Para dormir, só o chão dos vários salões ou a madeira do convés. Quanto a banhos, o racionamento impõe-se. Ar condicionado é mentira, e boa vontade da tripulação é tão rara que até impressiona. Salvam-se meia-dúzia que, do nosso lado, tentam dar a volta às coisas...
3ª Feira, 10 de Março, LUSITÂNIA EXPRESSO
Há muito perdemos terra no horizonte. Milha após milha, Timor vai ficando mais perto. Só apetece passar o tempo. E depressa. De repente, a solidão vai-se. Os indonésios mostram-se pela primeira vez. No ar, apresentam-se com um pequeno avião bimotor. Há quem graceje, protestando contra a falta de respeito dos "indos" ao enviarem tal avioneta: será que não valemos mais? Mas as graças escondem algum nervosismo. Eles aí estavam.
No limiar do ponto de encontro importa, uma vez mais recapitular cenários e clarificar opções: para que não restem dúvidas, porque a dúvida é a mãe de todos os pânicos. Todos os cenários são abordados mas o bom senso exige uma ordenação por probabilidades. O bloqueio é eleito com 95 por cento. Reafirma-se o compromisso de não tentar furar o bloqueio e reforça-se a intenção de nada fazer que ponha em perigo a vida dos participantes.
Esta não é, definitivamente, uma missão suicida. A vida vai continuar calmamente.
Já noite fechada, no radar surge o primeiro vulto. Ao longe, só se distingue uma pequena luz. Estamos ainda longe das águas territoriais de Timor. Durante meia hora todos parecem querer acreditar que é um navio mercante destinado a Darwin. As dúvidas esvanecem-se quando se vem colocar a nosso lado. A disposição das luzes não engana: tínhamos a companhia dum navio de guerra. Apesar da proximidade da companhia, o seu silêncio era absoluto. No Lusitânia, depois da agitação própria da chegada da fragata indonésia, estranhamente tudo adormece calmamente.
Como se nada se passasse. Só os jornalistas se mantinham vigilantes, num nervosismo próprio dos grandes momentos.
4ª Feira, 11 de Março, LUSITÂNIA EXPRESS0 no Mar de Timor
A noite foi branca. De olhar saltitante entre o "vizinho" do lado, o horizonte e o radar, na ponte de comando, as personagens A ficam-se pelo silêncio. Provavelmente nada iria acontecer até ao nascer do sol. Estrategicamente, o Lusitânia tinha determinado rumo e velocidade de modo a chegar às águas de Timor no início do dia. A luz seria um elemento essencial para que resultasse o efeito mediático: precisávamos de boas imagens.
Durante a noite, manteve se o contacto com Darwin, onde o Fernando Madrinha - a nossa janela para o mundo se desdobrava em contactos com várias instâncias internacionais. ONU, CEE, Comissariado para os Refugiados, foram exemplos. As respostas não eram particularmente animadoras. Delas, só retemos a do secretário-geral das Nações Unidas: "O secretário-geral foi informado das intenções da Missão Paz em Timor e o seu carácter pacífico. Espera que não ocorram incidentes violentos e que ambas as partes demonstrem bom senso e contenção." Nem uma só palavra sobre a soberania das águas territoriais de Timor, ignorando completamente as resoluções das Nações Unidas. O panorama não é famoso. Neste contexto, que apoio seria de esperar por parte das Nações Unidas no momento da crise?
Faltam duas horas para o sol chegar e uma nova sombra surge no radar.
Mais uma fragata, presume-se. O silêncio nas comunicações mantém-se. O grande momento aproxima-se. O novo companheiro de estrada vem colar-se a bombordo. Estamos bem acompanhados. Os participantes vão acordando para a manhã decisiva. A calma continua a reinar. As dezenas de conversas sobre todos os cenários tinham afastado todos os fantasmas. No horizonte, um novo navio. São já três, os nossos anfitriões.
Estamos a poucas milhas das águas de Timor. Vêm à memória as palavras do cartão "Ami Hó Imi": "Quando navegardes sobre o mar de Timor/Ajoelhai que é sagrado/Porque são as lágrimas dos timorenses Que pela paz têm chorado!" Ao fundo, com a primeira luz da manhã, surgia o recorte daquela terra mártir. Timor, ali tão perto...
Depois, a história, já todos sabem. Os indonésios não deixam margem para dúvidas e o comandante do navio (única autoridade no momento e independente da Missão) não arrisca nem um milímetro. O Papa Kilo Alpha India, nome de código do navio almirante indonésio, sobe o tom das ameaças e posiciona as fragatas em frente ao Lusitânia. O comandante decide então parar e dar meia volta. Definitivamente, esta não era a sua Missão. Na popa, chegou a hora da homenagem aos timorenses. Flores vão beijar o mar num longo caminho até à montanha sagrada onde encontrarão os seus mortos. É o retomar duma velha tradição. Voltam as lágrimas e reafirma-se a solidariedade. Nas palavras, a certeza de que aqui começa uma nova missão. Porque Timor é uma questão de tempo e de persistência.
À nossa volta, as fragatas e os helicópteros continuam a exibir-se. Tantos meios para parar um cacilheiro melhorado!
Conseguirá a Indonésia explicar o ridículo em que caiu ao deslocar tais forças militares ao encontro dum barco com estudantes?
Recuadas algumas milhas conseguimos a anuência do comandante em parar algumas horas para tentarmos alguns contactos de pressão. Com o argumento de avarias no sistema de refrigeração são içados dois balões negros, sinal de navio desgovernado. Os indonésios apertam o cerco e multiplicam os contactos pela rádio. Começa, então a saga dos telefonemas, que se tornam virtualmente impossíveis pois o navio à deriva desacerta constantemente os telefones satélite. De Timor chega a informação de que, apesar da tristeza, tudo se mantém calmo. Respiramos de alívio, porque era grande a preocupação dum gesto desesperado de martírio colectivo. Com esse recado chega também uma palavra de consolo: "Não desanimem. Continuem a lutar por Timor!" De todo o lado chegam indícios desanimadores. Só o Governo português toma uma posição rápida e eficaz. As Nações Unidas e a Comissão das Comunidades Europeias deixam no ar a evidência que nada farão.
Como de costume, aliás.
Passaram duas horas desde que parámos. Contra a paragem, as televisões protestam vigorosamente. Continuando ali, não haverá imagens no circuito internacional de TV. O mundo ficaria limitado à história contada pela Indonésia. … um argumento de peso...
Uma vez mais decidimos ser pragmáticos, mesmo correndo o risco de sermos impopulares. As máquinas do Lusitânia recomeçam a funcionar às 11 h 30 m. Tinham passado quatro horas desde o primeiro contacto com os "indos". Era tempo de regressar. Nessa noite, as televisões australianas apresentavam excelentes imagens da Missão fundindo-as com as do massacre e recolocando na opinião pública a questão de Timor. Em Portugal, um coro de críticas saía à rua. "Deviam ter ficado, deviam ter tentado furar o bloqueio, deviam..."
Somos um País de heróis de prateleira. Talvez por isso Timor esteja como está.
Esta Missão do Lusitânia está terminada, mas a grande Missão continua incompleta. Até ao dia em que for possível adormecer em paz em Timor.
(meses depois recebíamos uma carta de Xanana Gusmão sobre esta missão Paz em Timor)
Texto da carta de Xanana Gusmão enviada ao autor em Maio de 1992
CNRM — FALINTIL
Caro amigo, dr. Rui Marques
Recebi a sua carta em 8 do corrente.
Na verdade, a Missão Paz em Timor teve um significado especial para a Luta do Povo Maubere. Aqui, em Timor-Leste, a Missão denominou-se Lusitânia Expresso.
Conseguiu, após o 12 de Novembro, insuflar novo espírito, arrumar nova esperança — compreensivelmente sempre desmedida — e abrir uma réstia de luz no horizonte ensombrado da Luta.
Preparados. Todos preparados para unir aventuras à vossa Aventura! Falava-se com ardor da epopeia de jovens estrangeiros que pretendiam honrar os mártires sem campa. Ramalho Eanes e Barbedo de Magalhães dignificavam a iniciativa estudantil... mas sentia-se quão difícil seria a missão. Flores contra canhões numa irreverência simbólica de amor contra o crime!
Lusitânia Expresso teve que regressar. Não houve sangue mas, correram lágrimas. Não foi frustração; a DPP, sim! Foi tristeza, num irreprimido sentimento de abandono. A Missão Paz em Timor não podia ser objectivamente — entendida na sua missão. Sim, sentimento de abandono... somente porque o regresso à vista da terra enterrou as intenções no cemitério vazio de Stª Cruz! As flores, deitadas ao mar, representavam uma incapacidade geral e detinham outro simbolismo não menos irreverente: a impotência da potência!
Também, somente porque estavam preparados para vos receber e transmitir-vos o que resta dos laços que unem dois povos. E o que resta é, afinal, a própria luta! Após o inicial impacto da violência, danificando os cabouços morais da resistência, sentia-se o impacto do sangue derramado. Na verdade, um objectivo fora alcançado, de enormes proporções. Lusitânia Expresso era a resposta singular e inédita ao apelo de sangue. Só por isso, a Missão Paz em Timor teve esse significado especial!
Todos concordámos: no essencial e no seu objectivo primário, a missão foi cumprida! O melhor corolário teria sido, sem dúvida, poder os jovens timorenses estreitar a mão daqueles jovens estrangeiros que abraçaram a sua causa! Entre tristezas e pragas, não faltou humor entre a juventude:
Sabem porque é que o Lusitânia regressou?
Não!
Mário Soares, Cavaco e Vítor Crespo telefonaram a Ramalho Eanes e convenceram-no a regressar imediatamente...
Mas...
Primeiro, porque Timor-Leste é assunto nacional e, segundo, por causa dos barcos de guerra estarem a barrar a passagem...
...!!!...? ...
Eles virão todos... Mas com a NATO. O "menlu" (Deus Pinheiro) está tratando disso no "masyarakat eropa" (CE)...
Enfim, a Missão Paz em Timor (ou Lusitânia Expresso) foi, em si mesma, um ponto da situação. O que os governos cúmplices de Jacarta fizeram — para convencer os seus cidadãos a não embarcarem, foi talvez o maior obstáculo — para os vossos planos, já que, segundo pensamos, influenciou enormemente a atitude de Jacarta.
Em Timor-Leste, reparámos que, após um período inicial de nervosismo, recheado de preparativos para bombardeamentos, prisões e "desterros" a Ataúro dos provocadores do Lusitânia Expresso, a tensão afrouxou permitindo-se pensar que, se o barco atracasse os militares indonésios teriam muitas dificuldades em escolher a decisão mais acertada. Depois das ameaças de confronto aberto, o gradual abrandamento reflectido nas medidas (mais tolerantes a serem adoptadas) reconhecia que, para lá da retórica violenta, o "incidente" salientou um perigo que não convinha repetir-se. Necessário foi, assim, eliminar-se esse perigo à distância!
Se, por um lado, se pode dizer que se "evitou" mais derramamento de sangue, por outro, se deve afirmar que, vós e nós, fomos derrotados! Porque se perdeu um momento conjuntural, muito sensível, para fornecer ao exterior uma maior e melhor visibilidade do interior. Mas tudo isto não aconteceu e só nos resta olhar para o futuro.
Não vos agradecemos. Somente vos afirmamos que nos tocou profundamente o vosso empreendimento, remando contra a maré das dificuldades. Reconhecemos assim o alto grau de solidariedade dos jovens portugueses! Conseguistes engajar jovens de um bom número de países e, logo no início, para uma missão difícil!
A vossa sensibilidade permitiu-vos a percepção de que a vossa acção contribuiria para a defesa de uma causa justa. A vossa coragem e ardor — combativos — foram o impulso necessário para pensardes que podeis, no campo que vos é próprio, contribuir para a sensibilização da comunidade internacional. Contudo, o vosso feito foi a representação mesma da nossa Luta, nas dificuldades extremas que se têm que assumir, nos entraves medonhos que se têm de desafiar, nas imposições sem fim a que se têm de fazer face.
Pois agora, há que prosseguir. Nós lutamos há 16 anos. Hoje, vós, jovens portugueses, soubestes já entender a nossa Luta e, sobretudo, soubestes decidir pela acção. Uma acção que lembrou ao mundo a perversidade da política de dois pesos e duas medidas. Uma acção que, mesmo assim, comprometeu — muitas — consciências!
Sim, nada existe que agrade a todos. As críticas que recebestes salientaram apenas a democrática debilidade do "assunto nacional". Porque a crítica destrutiva tem um sentido positivo: serve para alertar, serve para dar ideia das dificuldades, serve para testar a consciência das próprias ideias e medir as capacidades reais e potenciais.
A vossa Missão foi entendida nos seus múltiplos aspectos e reflexos. Creio que só a persistência poderá dar valor ao "Lusitânia Expresso", como tendo sido o primeiro acto de uma ideia consequente... de jovens portugueses! E é aqui que aparece a questão primordial: como e quê!
Das vossas possibilidades, reconhecidamente limitadas, não se pode falar de estratégias mas de planos bem delineados para recolher efeitos práticos sobre a Luta do Povo Maubere.
Uma coisa é certa: há necessidade de maior pressão internacional para que Jacarta modifique a sua atitude.
E vós, jovens portugueses, liderastes um acto de solidariedade estudantil internacional. Foi, e deverá continuar a ser, o valioso acréscimo à solidariedade já existente.
Aprofundar e alargar a participação estudantil nesses 23 países, será talvez o primeiro passo. Incentivar a sensibilização em outros países, é também necessário.
Definir objectivo/s, em concertação com a solidariedade internacional e em resposta a cada conjuntura de Luta, é muito importante.
Traçar formas de acção globais, compatíveis, para o movimento estudantil no seu todo e parciais, por cada país, zonas e regiões do mundo, ajudará imenso. Será uma tarefa gigantesca, que vos exigirá esforços sobre-humanos, que vos desesperará pedindo continuidade e que vos animará esmagando-vos na vossa boa vontade! Será uma luta para vós mesmos! Uma luta, em que juntos apelaremos ao mundo para o diálogo em busca da solução.
Aqui, continuaremos com a nossa missão de verter o sangue pela Pátria; continuareis com a Missão Paz em Timor!
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