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Kichijiro, Rodrigues e Ferreira: a imperfeição dos “traidores”.

Writer's picture: Rui MarquesRui Marques

A propósito de “Silêncio”, de Shusaku Endo


A religião cristã, em particular os católicos, sempre louvaram a coragem e a fortaleza dos que, perante circunstâncias difíceis, foram capazes de afirmar a sua fé até à morte provocada por essa condição de cristão. Os mártires constituem, por isso, uma galeria de heróis que preenchem o imaginário de qualquer cristão e que nele acende o desejo de igual virtude: uma fidelidade tal à sua fé e ao Amor de Deus que os leva a oferecer tudo, inclusive a sua própria vida. Mas, ao mesmo tempo que o exemplo edificante da coragem dos mártires se expressava num dado tempo – os cristãos dão-lhe até a força fecunda de “sangue de mártir, sementes de cristãos” – em paralelo, a história sempre terá tido a expressão imperfeita do medo dos que perante a ameaça não resistiram. Os apóstatas e os “traidores” sempre foram olhados com o desprezo e, algumas vezes, com um julgamento duro e uma condenação inequívoca.

Pode um traidor ser mais do que um simples “mediocre” que não soube honrar a lealdade e a fidelidade dos seus compromissos? Como interpretar e julgar a fragilidade de quem não se firmou nas suas convicções e na sua fé? Pode ser compreendida, ainda que não recomendada?

“Silêncio”, de Shusaku Endo, constitui um universo em que vale a pena mergulhar para refletir sobre a imperfeição. O romance de Endo (e as declinações cinematográficas de Martin Scorsese com o filme “Silêncio” e de João Mário Grilo, com “Os olhos da Ásia”) conduz-nos por um mundo de inquietações e perplexidades. Referenciado a um período histórico fascinante – o chamado “século cristão do Japão”, entre 1543 e 1638 – constrói uma narrativa, baseada em alguns fatos reais, a que soma outros da sua ficção, que nos ajuda nesta jornada sobre a imperfeição humana.


A narrativa baseia-se numa viagem de dois jesuítas, Sebastião Rodrigues e Francisco Garrupe, que, em 1640, partem para o Japão em busca de Cristóvão Ferreira, um outro jesuíta que, supostamente, havia apostatado e do qual não havia notícias. Com estes dois jesuítas vai cruzar-se uma figura estranha e exótica, Kichijiro, um japonês que se junta à expedição a partir de Macau. Esta viagem trágica vai encontrar um território e uma comunidade em plena perseguição brutal dos cristãos, num processo intencional de expulsão dos crentes e extinção da religião cristã e, muito mais do que isso, numa decisão política de escapar a um potencial processo de colonização e domínio estrangeiro.

Dos quatro personagens principais da obra, três delas vão confrontar-se com a traição, como expressão da sua imperfeição e fragilidade.

Rodrigues, firme na sua fé, parte na busca daquele que tinha sido seu mestre (Ferreira) e que constava agora da lista dos que haviam apostatado. Leva seguramente a esperança de o resgatar. A sua coragem e fortaleza iniciais parecem torna-lo perfeito para a missão. Os primeiros passos evidenciam virtude e fortaleza, coragem e determinação. Não teme os riscos e avança destemido. Porém, começa a confrontar-se com uma realidade brutal e desumana. A violência que vai encontrar rapidamente se transforma num dilema moral. Os autores da estratégia de erradicação do cristianismo vão colocá-lo perante um dos piores dilemas morais que se pode enfrentar: escolher entre dois males, sem se descortinar qual é o menor deles. O cenário que lhe é criado é optar pelo fumi-e , como expressão da apostasia, pisando uma gravura de Cristo ou de Nossa Senhora, salvando outros cristãos que estão a ser martirizados ou manter a sua fé e deixando-os morrer. Obviamente que, pelo menos em certa medida, é um falso dilema pois o processo de extermínio era anterior e não se estancaria com a apostasia de qualquer pessoa. Mas a pressão psicológica e emocional seria, para muitos, insuportável. Rodrigues acaba por ceder. Junta-se à imensa galeria dos que caem e experimentam a sua imperfeição dolorosamente, por partiram de uma presunção de fortaleza e virtude que torna particularmente dura a experiência do fracasso. A experiência da imperfeição é muito demolidora para os que se consideram “bons”. Mas pode ser, paradoxalmente, uma excelente oportunidade para se aproximar da perfetibilidade.


Porém o personagem que mais repugnância pode provocar é Kichijiro. No entanto, é central nesta jornada. Apresentado como bêbado e perdido (ainda em Macau) junta-se aos dois jesuítas, para os ajudar a cumprirem a sua missão, como preço de um regresso a casa. E depois, trai, trai e trai. É imediata a tentação de o ver como um Judas renascido. No entanto, tem uma grande diferença. Este é um traidor inveterado, mas quase incompreensivelmente também, é alguém que não desiste de tentar outra vez. Uma vez e outra arrepende-se, confessa-se … e volta a trair. Esta imperfeição, porventura, é uma experiência que nos é próxima. Para crentes e não-crentes, na fé e na vida, tantas vezes, sobre pequenos e grandes erros, somos reincidentes. Sentimo-nos tão pouca coisa. Maltrapilhos e maltratados. E duros juízes de nós próprios. Como foi possível outra vez? Adelino Ascenso, autor de uma tese de doutoramento sobre a obra literária de Endo aventa a possibilidade de em Kichijiro, o autor ter querido mostrar que até Judas poderia ser salvo por Jesus . Acrescentamos nós, se Judas tivesse aceite a sua condição imperfeita, no código cristão, de “pecador” e se se abrisse a um recomeço.


Esta tensão entre os percursos de Rodrigues e de Kichijiro é sinalizada num interessante artigo de Rui Ramos :


“(…)Rodrigues identifica-se com Cristo e, muito naturalmente, compara Kichijiro a Judas. Ele é o herói, o guia é o seu traidor. Ele está próximo de Deus, o guia está afastado. Ele está salvo, o guia está perdido. Como seria previsível, esta é uma dicotomia para ser baralhada. Por fim, sob a perseguição e a tortura, também Rodrigues é reduzido a um apóstata, como Kichijiro. A questão muito explicitamente levantada pelo livro é esta: quando é que o padre Sebastião Rodrigues estava mais próximo de Deus? Quando pregava, quando se julgava um herói, um émulo de Cristo, convencido de que “Deus nunca nos dá provas que nós não consigamos superar”, ou quando, em silêncio, na abjeção e na dúvida, percebe que afinal não era melhor do que Kichijiro, e que também ele é um fraco, um Judas, um “anjo caído”?”
Contra a salvação pela força, pela glória, pela fé e pelo impacto da palavra, o livro parece sugerir a possibilidade da salvação pela fraqueza, pela abjeção, pela dúvida, pelo silêncio. Porque só através da dúvida, o crente se poderia libertar do seu narcisismo, das suas pretensões, para finalmente se entregar e ser recebido por Deus. É na queda que o padre Rodrigues julga compreender o papel de Judas (…).”

Esta última consideração de Rui Ramos é particularmente iluminadora. A imperfeição expressa no fracasso pode não ser sinónimo de derrota sem regresso. É assim no contexto do cristianismo, de um Deus sempre disponível a perdoar e a exercer a sua infinita misericórdia, em que um “pecador” nunca perde a possibilidade de regressar à graça de Deus, mas também poderá ser num trajeto de vida de um não-crente se for capaz de integrar, com sentido, a experiência amarga do fracasso, valorizando a humildade e a aprendizagem que dela pode ressaltar, bem como através desta experiência poder ser muito mais compreensivo com quem falha, por ele haver também participado dessa etapa dolorosa do viver humano.


Há ainda nesta história um terceiro traidor. A apostasia de Cristóvão Ferreira constituiu um verdadeiro “escândalo” para a Igreja Católica do seu tempo, pois a sua posição destacada entre os cristãos e, sobretudo, após a apostasia ter ficado a colaborar com os japoneses no seu processo de extinção do cristianismo, estigmatizou-se seriamente. Há, no entanto, abordagens que defendem que Ferreira poderia ser só mais um dos que aparentemente apostataram, mas permaneceram fiéis à sua fé.


Assim, a personagem de Cristóvão Ferreira pode abrir a uma outra reflexão ainda mais desconcertante. Depois da consolidação da traição e da apostasia, da fragilidade e do erro, ainda pode haver alguma janela de esperança? Esta é mais uma fonte de perplexidade que esta obra nos oferece. Endo arrisca uma leitura na sua narrativa que surpreende muitos quando coloca na voz de Jesus Cristo, dizendo a Ferreira, no momento do fumi-e que “podes pisar. Foi para ser pisado pelos homens que eu nasci neste mundo. Foi para compartilhar a dor dos homens que carreguei minha cruz” . Este é o único momento em Deus quebra o silêncio, revelando a sua face mesmo perante a fraqueza humana.


É que, provavelmente, foi graças aos (falsos) apóstatas japoneses que continuaram a professar o cristianismo que este sobreviveu nos séculos de encerramento ao mundo exterior que se seguiram ao “´século cristão do Japão”.

Estranho? Não, muitos dos que apostaram fizeram-no para salvar a sua vida e a dos seus. Provavelmente consideraram que a desproporção de forças no século XVII, entre a voragem dos que queriam extinguir o cristianismo e os que o professavam, aconselharia uma passagem à “clandestinidade”. Os “Kakure Kirishitan” mantiveram viva a sua fé, ainda que sem a glória do martírio e da santidade. Sendo imperfeitos, nunca desistiram. É curioso que, voltando a Adelino Ascenso , este refira o desconforto de Endo face ao silêncio (o outro “silêncio” de que o livro trata) da igreja face a estes “fracos”:

“(…) Ele quis, com esse livro, realçar não só o forte, porque o forte é o mártir, aquele que não renuncia à sua fé, não apostata e que é martirizado, mas também defender o fraco, o cobarde, o débil, aquele que, não aguentando a dor, ou por compaixão pelos outros, acaba por apostatar. Digamos que há uma dicotomia. A Igreja-instituição, valorizou sempre muito os mártires, mas esqueceu-se desses pobres que, tendo apostatado, eram escorraçados pelos outros e eram desprezados pelos outros. (…)”


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