1. Começo, naturalmente, por vos saudar e dar as boas-vindas a Portugal para este encontro dedicado ao Diálogo Intercultural, na sua relação com os Media. A presença de representantes de vários países da União Europeia, de especialistas conceituados nos domínios dos media e do diálogo intercultural, representantes de diferentes instituições de acolhimento e integração de imigrantes em Portugal, bem como ilustres parceiros do Ministério da Cultura de Portugal, representa um sinal da relevância que o diálogo intercultural assume no nosso tempo, com particular destaque para a relação com os media.
2. É óbvio que a escolha desta temática específica não resultou do acaso. Numa sociedade altamente mediatizada, onde os media influenciam significativamente a percepção e a construção da realidade, importa dar a devida importância ao seu impacto na configuração do Diálogo intercultural. Se é verdade que o diálogo intercultural acontece antes e para lá dos media, é igualmente seguro que os media condicionam decisivamente as condições para esse diálogo. No contexto social da nossa Europa, este diálogo surge indissociável da imigração e de todas as questões a ela associadas. Por isso, nesta intervenção inicial tomo a liberdade de juntar esse eixo à reflexão sobre o diálogo intercultural e os media.
3. Partindo da extraordinária complexidade que esta abordagem encerra – relação media/imigração/diálogo intercultural – com dimensões multifactoriais e imprevisíveis, importa não abdicar de uma visão positiva: não se trata de uma batalha perdida.
Os desafios são grandes e complexos mas não são inultrapassáveis. Acreditamos, acima de tudo, que o saldo final pode ser muito favorável à consolidação de uma sociedade plural e marcada pelo afecto pela diversidade.
4. Mas para que seja esse o resultado final, há importantes etapas concretas a ter em conta, no caminho a trilhar. No que toca aos media quando falamos de diálogo intercultural e imigração, devemos começar e terminar pelo respeito pela autonomia dos media e dos seus mecanismos de auto-regulação, estruturados em função da ética e da deontologia profissional, sem a interferência invasiva dos governos e de outros organismos de pressão. No exercício da sua profissão, os jornalistas sabem que liberdade e responsabilidade são duas faces da mesma moeda indivisível[1] e que só a sua perfeita conjugação servirá a sua missão. É, no pleno exercício desse binómio liberdade/responsabilidade que se deverão gerir em regime de auto-regulação as questões referentes ao tratamento ético e deontológico das notícias sobre imigração e diversidade cultural.
5. Nas linhas de trabalho a considerar, a primeira, mais simples e exequível, situa-se ao nível do Livro de Estilo e da gestão ética e deontológica da actividade jornalística. Será já um passo extraordinário neste roteiro, a aplicação universal da regra de não identificação de nacionalidade ou de etnia nas notícias (ex: “SEF detém seis prostitutas brasileiras”), a não ser quando esta é explicativa do acontecimento em notícia (ex: “Brasileiros festejam a vitória da sua Selecção”). Essa tendência já teve um importante desenvolvimento, mas precisa de ser consolidada. Há já bons exemplos, mesmo nos canais de televisão, tradicionalmente mais avessos a esse cuidado.
6. Uma segunda etapa neste roteiro, ainda ao nível das regras da construção das notícias, passa pela recusa de utilização de categorias grupais - “ciganos”, “negros”,....- enquanto sujeito da notícia ou como enquadramento de um determinado comportamento. Os protagonistas das notícias são pessoas, com nome e com uma história individual única, não devendo ser transformados em expressões anónimas de um suposto grupo de pertença ou que a sua individualidade seja secundarizada.
7. Em terceiro lugar, importa evitar as armadilhas do valor-notícia “diferente / estranho / exótico”. Tal dinâmica constitui, muitas vezes, a razão de agendamento de um acontecimento que noutra circunstância não seria notícia. Assim importaria que na selecção editorial (gatekeeping) feita em qualquer meio de comunicação se avalie a efectiva relevância de um acontecimento por si mesmo, independentemente da origem “diferente” do seu protagonista. Por exemplo, perante um determinado crime praticado supostamente por um estrangeiro, deve perguntar-se: se ignorarmos o factor de ser um estrangeiro o autor, este acontecimento é notícia agendável? Perante uma rusga da polícia a uma casa de alterne, pergunta-se: noticiaremos com igual destaque a detenção de mulheres portuguesas e estrangeiras? Saberemos distinguir o peso relativo da culpa de quem explora seres humanos – o dono da casa de alterne, normalmente nacional – e as mulheres detidas e habitualmente colocadas no centro da notícia? Perguntaremos pelos clientes e discutiremos a sua responsabilidade?
8. Ainda neste registo há que ter a memória avivada para a tentação humana, historicamente presente de, em crise, se procurarem “bodes expiatórios”, quase sempre personificados no “estrangeiro” e no “diferente”.
Um jornalismo sério não se deixa manipular por esta pulsão irracional, dinamizada pelo medo e pela desconfiança. Nessa linha de exigência, o Código de Princípios da Federação Internacional dos Jornalistas, revisto em 1986, inclui expressamente o seguinte artigo:
“O jornalista deve estar desperto para o perigo de discriminação desencadeado pelos media e deve fazer o máximo para anular essa discriminação baseada, entre outras coisas, na raça, no sexo, na orientação sexual, na religião, opinião política ou outras e origens nacional e social”
9. Neste roteiro deve estar igualmente incluída a exigência profissional de completar a notícia factual - se verdadeiramente relevante em si mesma – com o necessário enquadramento. A procura de alguns “porquês” do acontecimento, a investigação de quem não se satisfaz com a superficialidade das coisas, o contraditório e o cruzamento de fontes, permitirão um trabalho jornalístico mais rigoroso e de maior qualidade. Note-se que, com esta tese, em momento algum se defende um jornalismo que vise uma “imagem positiva” da imigração. Os militantes e activistas de diferentes causas tende a pedir o impossível aos jornalistas: imagens positivas das causas que defendem! Não haverá, no entanto, pior abordagem que procurar condicionar a análise jornalística de uma qualquer questão a uma determinada intenção promotora, por mais justa que seja a causa. O único e justificado objectivo que deve ser exigido é a verdade integral e a justiça sem preconceito nem manipulação.
10. Numa outra esfera de abordagem, os media podem noutro género jornalístico – por exemplo, a reportagem ou a entrevista – produzir um relevante papel cívico ao dar a conhecer a diversidade cultural das diferentes comunidades, radicada na mesma natureza humana que todos partilhamos.
Num mundo cada vez mais globalizado, tornam-se próximas outras realidades que passam a fazer parte do nosso quotidiano. Descobrir nelas, através dos media, a riqueza da diversidade, mas também a expressão de que somos a mesma Humanidade, é de enorme importância. É uma (re)descoberta fundamental. Nesse esforço, também é importante criar “janelas” para que vozes de comunidades minoritárias se possam dirigir através dos media a toda a grande comunidade, bem como fazer espelhar nas redacções dos media a composição multicultural da sociedade[2]. A criação de uma rede de fontes e o acolhimento mediático de porta-vozes de diferentes comunidades são outros caminhos para esta etapa do roteiro.
11. Nestas etapas do roteiro, é essencial considerar exercícios de projecção de quem se coloca no lugar do “outro”. A redução da distância e da hostilidade começa quando somos capazes desse pequeno-grande passo. Nesse sentido, os media têm o poder extraordinário de desvendar as histórias pessoais, mostrando o rosto humano, os sofrimentos e os sonhos de muitos imigrantes. Essa imagem mediática reduz a distância entre o público e aquele “estranho” que, através dos media, se torna próximo e com o qual se cria um vínculo de afecto. Igualmente têm um papel positivo nessa projecção as notícias e reportagens veiculadas nos media portugueses, sobre as dificuldades e as discriminações sentidas pelos emigrantes portugueses espalhados pelo mundo.
Essas notícias, que nos despertam sentimentos de revolta, ajudam-nos, se incentivados a isso, a reflectir sobre as nossas atitudes e preconceitos perante os imigrantes que acolhemos no nosso país, descobrindo que muitas vezes fazemos aos “outros” aquilo que não queremos que seja feito aos “nossos”. Por isso, o jornalismo de “rosto humano” nas “estórias” sobre homens e mulheres imigrantes, bem como as notícias sobre a vivência da emigração portuguesa são muito importantes.
12. Torna-se também necessário fazer um investimento sério na formação contínua que leve os profissionais de media, em particular os jornalistas, a conhecer de uma forma cada vez mais detalhada a temática das migrações e diversidade cultural, ultrapassando mitos e leituras superficiais, bem como promovendo a reflexão crítica sobre trabalhos desenvolvidos nesta área, tendo em vista o permanente aperfeiçoamento do trabalho jornalístico.
13. Seguramente que a responsabilidade não se esgota nos media. A estruturação da agenda pública é da responsabilidade de cada um e de todos nós. Assim é fundamental trabalhar ao nível da agenda intrapessoal, em cada um de nós, procurando eliminar os preconceitos e desconfianças que porventura ainda nos habitem. Um exame atento do nosso olhar sobre esta realidade descobrirá que não estamos imunes ao fenómeno do racismo subtil ou inconsciente. Igualmente importante é investir ao nível da agenda interpessoal, nomeadamente discutindo esta temática ao nível dos grupos de pertença, quer familiar, quer de amigos ou colegas, ou ainda de associações, sindicatos ou igrejas. Nestes fluxos de debate se constroem e desconstroem mitos e estereótipos sobre os imigrantes de uma forma muito mais poderosa do que imaginamos. Finalmente, na percepção do estado da opinião pública, a afirmação e a militância pública pela causa da tolerância e da solidariedade universal, pelo respeito da Pessoa humana, independentemente da sua nacionalidade, etnia ou religião, são fundamentais para a construção de uma opinião pública tolerante e humanista. Se nada fizermos, se nos deixarmos arrastar para uma eventual “maioria silenciosa” deixaremos por omissão campo aberto a discursos e mensagens de fechamento e de intolerância.
14. Estes são alguns desafios que se colocam às sociedades europeias e, no quadro do Ano Europeu do Diálogo Intercultural, teremos uma excelente oportunidade para reafirmar a centralidade dos media na promoção do diálogo civilizacional, da tolerância e da construção de um futuro comum onde todos tenhamos lugar.
Comments