Artigo para Revista Communio
1. Ousadia para os nossos tempos Nos tempos que correm quase parece estranho alguém ter ousado dizer isto.
Assim se justifica a interrogação estupefacta do título. Creio, no entanto, que
Paulo VIi sabia bem o que queria dizer. Ao contrário do cepticismo que tudo
corrói e nada deixa de pé, Paulo VI expressava desta forma a esperança na
capacidade transformadora de uma intervenção política inspirada pelos valores
evangélicos. Na verdade, já Pio XI se tinha referido à política como “um ramo
do amor ao próximo” e outros sucessores de Pedroii foram sinalizando a
importância da intervenção política. Porém, sendo realista, não é esta a visão
que o nosso tempo (e nele, muitas das vozes da nossa Igreja) cultiva sobre a
política e os seus autores.
A sociedade da desconfiança, fruto e semente de uma cultura mediática que
entroniza o princípio “bad news; good news”, vai demolindo dia-a-dia o que
restava do prestígio do exercício da actividade política. Fá-lo através da
profusão de escândalos que, tendo muitos deles fundamento, não reflectem
toda a realidade, ignorando assim a imensa maioria silenciosa de gestos
políticos motivados pelo bem comum. Sucedem-se os discursos de descrença e
de desconfiança, de estigmatização e de desconsideração. Apelidar alguém de
“político” há muito passou a ser ofensa ou, no mínimo, não sinaliza nada de
bom. Fomos perdendo, dessa forma, a capacidade de ver a política como uma
expressão de serviço ao bem comum e já não acreditamos que alguém a exerça
como missão de serviço à comunidade. Ninguém arrisca, por isso, definir a
política como espaço privilegiado de exercício da caridade.
As consequências estão à vista. A abstenção eleitoral e a indisponibilidade para
a participação política activa, exercida gratuitamente em função do bem
comum, vão subindo progressivamente. Com a desertificação da participação
política, nomeadamente dos cristãos, vão desaparecendo protagonistas que
pudessem interpretar nesse terreno – ainda que de uma forma imperfeita,
como a fragilidade da natureza humana impõe – os valores evangélicos. Ao
mesmo tempo, multiplicam-se as vocações de serviço ao bem comum, através
da solidariedade e da acção caritativa directa que é visível e sensível. Mas
desses, poucos se imaginariam a exercer o seu voluntariado solidário através da
política.
2. Condicionalismos da actividade política no século XXI
A realidade política é, naturalmente, detentora de parte significativa da “culpa”
deste desinteresse e afastamento dos cidadãos e, entre eles, dos cristãos.
Vezes de mais, deixou-se aprisionar por uma prática que a empobrece e a
menoriza. Ao integrar os ensinamentos perversos de algumas teses, entre as
quais o maquiavelismo não será das menores, a política perdeu a sua grandeza
e a sua beleza. O foco na conquista e manutenção do poder enquanto fim em si
mesmo, envenenou a natureza sublime da política. Mas, convenhamos, em
pleno século XXI também não é fácil exercer uma actividade política.
A política tem que responder hoje a desafios de uma sociedade turbulenta, em
permanente mudança numa velocidade estonteante. Nada “é”, tudo “já foi”. A
introdução de uma permanente incerteza sobre tudo, torna infernal o exercício
da actividade política. A validade dos diagnósticos encurta-se. Abdica-se dos
tempos de maturação das soluções propostas. Mesmo assim, quando estas
chegam ao terreno já estão desfasadas da realidade. O problema que se queria
solucionar evolui e o contexto mudou. Como será possível fazer um puzzle de
imagens em movimento que mudam em cada 30 segundos?
Fazer politica neste quadro é, por isso, missão muito difícil, mesmo para gente
bem formada e competente. Acresce ainda que a realidade se complexificou.
Hoje, nada é simples. Só o poderá ser para irresponsáveis ou demagogos. Cada
questão arrasta um sem número de sub-questões que tornam cada problema
num novelo cheio de nós. E do lado das soluções, a conjugação da resposta
técnica, com a financeira e a política, resulta muitas vezes num conjunto vazio.
Mas os problemas não acabam aqui.
Hoje, na verdade, o exercício da actividade política tornou-se num dos
pequenos poderes da nossa sociedade. Ao contrário do que porventura se
julga, os políticos podem muito pouco. Outros poderes fácticos afirmam-se
avassaladoramente. Basta falar de dois deles: o poder mediático e o poder
económico. Actualmente a actividade política está completamente
condicionada pela agenda mediática. Creio não estar longe da realidade se
afirmar que mais de 50% do tempo dos agentes políticos é consumido pelo
impacto mediático sofrido ou que se deseja provocar. É evidente que a
transparência e a fiscalização que a actividade política é sujeita a partir da
agenda mediática tem inúmeras vantagens. Mas traz com ela enormes riscos.
Por exemplo, tudo o que não é instantâneo, espectacular ou exótico não tem
lugar mediático. Ora, a política a sério raramente pode ou deve ter estas
características. Por outro lado, quem tem acesso à agenda mediática é capaz de
pressionar o poder político em favor da sua causa e consegue focar a atenção
dos políticos no tema que lhe interessa. Mas muitas vezes as verdadeiras
causas urgentes e relevantes para a acção política residem em quem não tem
poder mediático e não consegue atenção dos políticos por via dessa pressão.
Só que os políticos não têm tempo para quem não tem “poder de fogo”
mediático…
Também alguns agentes do poder económico têm hoje interfaces muito
perigosos com o poder político. Às vezes, dá a sensação que neles reside o
verdadeiro poder, capaz de influenciar, por diferentes jogos de bastidores, o
curso da actividade política, tornando os políticos em simples marionetas de
interesses obscuros.
Finalmente, neste desfiar de dificuldades, a própria cultura de exercício da
actividade política transporta as sementes da sua destruição. O conflito
permanente, o ataque sem quartel, a demolição persistente do adversário, a
avidez de poder configuram a politica como algo de detestável aos olhos dos
cidadãos. A ausência de gestos de verdadeiro diálogo e de profundo sentido de
cooperação em função do bem comum, que vão além das naturais diferenças
ideológicas e programáticas, é também a causa do descrédito desta nobre
função social.
3. Conflitos entre a natureza da política e da religião
Uma outra dimensão relevante para esta reflexão, decorre da natureza
diferente da religião e da política, em particular da Igreja Católica e das
democracias ocidentais, e consequentemente do funcionamento das suas
instituições e da especificidade do seu olhar sobre a realidade. E não podiam
ser mais diferentes.
A Igreja vive sustentada numa Verdade revelada, sedimentada pela sabedoria
milenar de muitas gerações e está vocacionada para um horizonte de vida
eterna. O exercício da actividade política numa democracia representativa tem
a sua legitimidade no voto popular que referenda um programa conjuntural e
que dura – se durar – uma legislatura.
A Igreja tem uma hierarquia consolidada, com estreitos limites de exercício
democrático, no sentido da eleição dos seus dirigentes não estar sujeita a
votação dos seus membros e não está sujeita à volatilidade de ciclos eleitorais.
Na política vive-se permanentemente no fio da navalha dos resultados dos
votos (dentro do partido e no país), tendo toda a actividade condicionada por
esse micro e macro julgamento popular.
A Igreja, e bem, não tem que apresentar soluções concretas para os problemas
de cada sector. Deve situar-se, na sua doutrina social, ao nível da defesa dos
princípios e dos valores fundamentais. Consequentemente, nunca será julgada
pela adequação de propostas concretas. Já a política, se é verdade que deve ter
a sua âncora nos princípios e valores, têm que dar passo para o “como fazer”,
traduzindo para o concreto de cada contexto, a solução possível. E será julgada
por isso.
Creio que vale a pena ter em conta estas diferenças significativas para melhor
poder desenvolver o diálogo entre a Igreja e a política. Da parte dos políticos,
independentemente da sua convicção religiosa, importaria ouvir humildemente
e com atenção a sabedoria secular que a Igreja transporta e, sem complexos,
acolher o muito de bom que encerra. Mas seria igualmente útil ter da Igreja
sinais de quem percebe a contingência da natureza do exercício da política e
não lhe exige o impossível.
4. Que esperar da Igreja em relação à política?
Aprofundemos um pouco este ponto: que pode a política esperar da Igreja? O
que podem, particularmente os católicos empenhados na política, esperar da
sua “Mãe e Mestra”?
O primeiro e porventura mais importante contributo que a Igreja é chamada a
dar é a memória, o aprofundamento, a actualização e a renovação da sua
Doutrina Social. Ao longo de mais de um século, tem sido desenvolvido o que é
hoje um património precioso, que nos ilumina a todos. A defesa da dignidade
humana, do bem comum, da paz e da justiça têm tido expressão magnífica na
voz da magistratura da Igreja. O mundo muito lhe deve. Recuperar as grandes
mensagens desde a Rerum Novarum, até à Deus Caritas Est, passando pela
Populorum Progressio e sobretudo pela Gaudium et Spes é essencial. A Igreja é,
nesses documentos, portadora de uma visão sobre o destino da humanidade
que vai muito para lá das fronteiras do religioso. Mas o mundo não pára e
novos desafios vão sendo colocados. Na economia, na cultura, na sociedade e
na política. A Doutrina Social da Igreja precisa de acompanhar essas novas
fronteiras e, em tempo, ter a palavra sábia e inspiradora para nos ajudar a
enfrentar esses desafios. Uma palavra que em cada um deles seja visível o
rosto misericordioso de Deus e o sinal de esperança do qual os cristãos são
dilectos portadores.
No passado, a Igreja Católica teve a ousadia de proclamar a sua “opção
preferencial pelos mais pobres”. O mundo, e a política em particular,
beneficiariam muito de ter uma Igreja que fosse sempre “a voz dos que não
têm voz”. Que pelas palavras e pelos actos, continuasse a ser a primeira linha
de uma expressão do amor ao próximo, exercido com particular atenção aos
mais necessitados, onde quer que estejam e o que quer que precisem.
Num tempo que Bento XVI tão bem nos lembra que “a verdadeira pobreza é a
falta de esperança”iii a política e a sociedade em geral, esperam da Igreja esse
protagonismo da voz da esperança para o nosso tempo. Quando todos os
diagnósticos são catastrofistas e não parece vislumbrar-se nenhuma réstia de
luz, da Igreja, sede de um saber de salvação eterna, pode vir a palavra certa
que contextualiza as dificuldades presentes e lhes dá um potencial significado à
luz da esperança.
Por último, a política beneficiaria muito de um reforço do apelo da Igreja à
participação política dos cristãos. Na diferença das vocações de cada um, pois a
participação política não se esgota nos partidos (mas é essencial aí também), o
incentivo ao exercício da missão de serviço ao próximo através da política
poderia ser um contributo inexcedível. Mais católicos na política abririam
seguramente mais hipóteses para a expressão dos valores evangélicos, qual
fermento que possa levedar a massa. Num contexto de separação saudável
entre religião e política, assumindo diferentes inserções partidárias como
legitimas, continuando a recusar “partidos cristãos” que se arroguem da
exclusiva representação dos católicos, a Igreja poderia, sem medo, contribuir
para uma verdadeira renovação na política, da qual esta está carente.
5. Que apelo aos cristãos em relação à actividade política?
A voz magistral da Igreja sempre nos deixou de uma forma clara o apelo à
participação política. Basta lembrar, do Vaticano II, a Gaudium et Spes:
“75 - Os que são ou podem tornar-se aptos para exercer a difícil e muito
nobre (7) arte da política, preparem-se para ela; e procurem exercê-la
sem pensar no interesse próprio ou em vantagens materiais. Procedam
com inteireza e prudência contra a injustiça e a opressão, contra o
arbitrário domínio de uma pessoa ou de um partido, e contra a
intolerância. E dediquem-se com sinceridade e equidade, mais ainda, com
caridade e fortaleza política, ao bem de todos.”
Num outro documentoiv diz-se:
“14 - " (…)Os católicos peritos nos negócios públicos e firmes, como devem
ser, na fé e doutrina cristã, não recusem participar neles uma vez que,
exercendo-os dignamente, podem atender ao bem comum e, ao mesmo
tempo, abrir caminho ao . Evangelho.".
Já João Paulo II, na sua Exortação Apostólica "Christifideles Laici" era
inequívoco:
42. (..)Para animar cristãmente a ordem temporal, no sentido
que se disse de servir a pessoa e a sociedade, os fiéis leigos não
podem absolutamente abdicar da participação na «política»,
ou seja, da múltipla e variada acção económica, social,
legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover
orgânica e institucionalmente o bem comum. Como
repetidamente afirmaram os Padres sinodais, todos e cada um
têm o direito e o dever de participar na política, embora em
diversidade e complementaridade de formas, níveis, funções e
responsabilidades. As acusações de arrivismo, idolatria de
poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos
homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou
partido político, bem como a opinião muito difusa de que a
política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam
minimamente nem o cepticismo nem o absentismo dos cristãos
pela coisa pública.”
Independentemente do papel que a Igreja possa desempenhar no maior ou
menor incentivo ao empenhamento político dos católicos, é à consciência de
cada um que se coloca esse desafio. Que papel queremos ter na construção da
“cidade dos Homens”?
Hoje, a intervenção política, em estrito e lato senso, pode representar uma
opção desconfortável e pouco estimulante. Mas abdicar dela é faltar à ambição
do maior serviço ao bem comum.
Por isso, na agenda dos católicos do nosso tempo estará sempre este desafio
de ajudar a mudar as estruturas do pecado social, através da capacidade real de
se opor a tudo o que atenta contra a dignidade humana e de se mobilizar para
tudo o que a promova.
Servos do bem comum, os católicos na politica, com outros Homens de boa
vontade e de outras convicções religiosas (ou mesmo sem elas), podem dar
corpo à opção preferencial pelos mais pobres, rasgando horizontes de
esperança.
Na política, poderão ser discípulos e pontífices (construtores de pontes) na
expressão do amor ao próximo. E assim, experimentarão a mais alta forma de
caridade.
i “A política é a mais alta forma de caridade” Paulo VI
ii Ver, por exemplo, a Exortação Apostólica "Christifideles Laici"João Paulo II
iii Discurso aos membros do Conselho de Administração da Fundação "Populorum Progressio", para a América Latina e o Caribe,
14/7/2007
iv Apostolicam Actuositatem – Apostolado de Leigos
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