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Writer's pictureRui Marques

Televisão: um perigo para a Democracia?

Análise crítica de algumas teses de Popper, Bourdieu e Ramonet.

"Do General Pinochet ao General Jaruzelski, todos os ditadores que acreditaram poderem defrontar sem receio as urnas com o pretexto de que controlavam há anos os media, e particularmente a televisão, conheceram um falhanço desastroso. Os franquistas em Espanha e os comunistas na Rússia, apesar do controle absoluto dos media ao longo de decénios, perderam as primeiras eleições livres após a queda dos seus regimes autoritários. O que mostra bem que o controle dos media e o domínio da televisão não ocasionam, automaticamente, o controlo das mentes. Transmitir ideias e influenciar as mentalidades são operações que não têm nada de simples, de mecânico e que continuam a ser de uma extrema complexidade.“

in Ramonet, I. “A Tirania da Comunicação”, 1999

Introdução


Sendo indiscutível a relevância social que os fenómenos televisivos assumiram nas últimas décadas é normal que sobre eles incida uma expectativa quase desmesurada bem como, muitas vezes, uma crítica feroz.


Balançando entre teses optimistas que viam na Televisão uma revolução capaz de transformar o mundo, sublinhando a sua capacidade educativa das “massas”, até às visões catastrofistas que a apontam como causa de todos os males, várias são as perspectivas de análise. É certo, no entanto, que nos últimos anos se tem vindo a acentuar, nomeadamente junto de intelectuais e lideres de opinião, uma visão hiper-crítica da dinâmica televisiva. É difícil encontrar, hoje em dia, um pensador credível, com coragem de publicar um discurso distinto desta linha. Ao contrário, multiplicam-se as obras que sublinham, em diferentes eixos, os malefícios da televisão para o indivíduo, para a família ou para a democracia.


Todos os unanimismos tem, porém, os seus pontos fracos. A espiral de acordo em redor de ideias fortes, protagonizadas por personalidades notáveis arrasta, por vezes, o discurso para terrenos pouco consistentes de “ideias feitas” e de simplismos que valerá a pena (con)testar. O carácter eventualmente excessivo das críticas feitas, sustentadas mais no peso intelectual de quem as profere do que na sua comprovação científica, algumas aparentes confusões entre causas e efeitos, bem como flagrantes desatenções quanto ao papel de outras dinâmicas sociais que condicionam a configuração da televisão são linhas de desenvolvimento deste exercício.


Ao longo deste trabalho, percorreremos numa primeira fase, as teses de três críticos do fenómeno televisivo – Karl Popper, Pierre Bourdieu e Ignacio Ramonet – onde sintetizaremos os diferentes raciocínios, para seguidamente tocar nos conceitos do Homo Zappiens, de Almeida Santos, concluindo com um olhar rápido sobre aqueles que são, na nossa leitura, os traços de mudança na nossa sociedade que, ao mesmo tempo, condicionam e são condicionados pela configuração da televisão no nosso tempo.


Finalmente, invertendo a afirmação de Popper, explorar-se-á uma tese distinta: é nos modelos democráticos que hoje o mundo ocidental adopta, sustentados numa sociedade aberta e numa economia de mercado, que está a génese das condicionantes da televisão contemporânea, com as suas virtudes e defeitos. Esta é, primeiro que tudo, um produto/espelho da nossa sociedade.





  1. O olhar de Popper sobre os perigos da TV para a Democracia e os contributos de Condry


Sir Karl Popper, um dos pensadores mais prestigiados do Século XX, autor de “A Sociedade Aberta e seus inimigos”, vem, já no final da sua vida, publicar algumas peças sobre Televisão – nomeadamente, “Uma Lei para a Televisão”- que tiveram um notável eco na opinião pública. Curta e concisa, esta tese aparentemente muito inspirada pelos trabalhos de Condry - que mais á frente também abordaremos - é hoje o expoente máximo de uma leitura apocalíptica do papel da Televisão nas sociedades contemporâneas.


Partindo de uma expectativa duplamente excessiva, na qual “a televisão, cuja influência pode ser terrivelmente nociva, poderia ser, pelo contrário, um notável instrumento de educação[1], Popper vai desfiando ideias - quase todas negativas – cujo rosário se inicia com a convicção da “ impossibilidade de encontrar recursos humanos capazes de produzir vinte quatro horas de emissões de qualidade por dia. Quanto mais são as cadeias mais difícil é encontrar profissionais verdadeiramente capazes de produzir programas atraentes e de boa qualidade[2]. Estranho princípio para um crente no génio humano e para um adepto da sociedade aberta que convive com a economia de mercado.


É, provavelmente, o primeiro de uma série de erros de interpretação.


A capacidade criativa dos profissionais, somada a recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados e ao desenvolvimento de novos padrões estéticos e culturais evidenciam, em diferentes segmentos da actividade televisiva, uma resposta potencialmente inesgotável. Naturalmente, em regime de economia aberta e de livre concorrência, esta capacidade produtiva está condicionada pela elasticidade do consumo. É este que determina o sucesso dos produtos televisivos que vão sendo lançados e, consequentemente, que vai ditando as novas exigências à produção.

Olhando para a qualidade televisiva, nomeadamente em termos comparativos dos mercados com maior produção com os que têm menor, verificar-se-á o fenómeno inverso ao que Popper descreve: quanto maior a produção, maior a probabilidade de encontrar produtos de qualidade. Esta ganha com as possibilidades multiplicadas dos talentos poderem ser desenvolvidos, de novos valores surgirem bem como o espectro das propostas ser mais alargado, pois os mercados tendem a segmentar-se.


Mas, mais adiante, percebe-se que o argumento de Popper é, acima de tudo, uma expressão nostálgica, de um homem aparentemente desencontrado com o Tempo. Ao afirmar "A televisão no seu início era relativamente boa. Propunha bons filmes e emissões honestas. A concorrência era quase nula e a procura de público não se desenvolvera. A produção podia, pois, ser mais selectiva.” [3] o autor, ao invés das suas teses da “sociedade aberta”[4] parece defender a lógica de canal único, dominado pelos supremos e iluminados programadores que “ditam o que o povo deve ver”, sem alternativa. Descrê-se na capacidade de escolha do espectador e da segurança que a oferta múltipla proporciona, por exemplo, no cruzamento das fontes de informação e no teste à sua veracidade.


Vinda de um homem de Liberdade, esta tese, não fora a evidência nostálgica, soaria estranha. Ignorar o imenso caminho de permanente melhoria da produção televisiva - apesar de nesse percurso existirem, como é óbvio, expressões de péssima qualidade televisiva - é incompreensível.


Noutra dimensão, o autor opta por não aprofundar a definição do que é “bom” e “mau” em televisão, considerando que “qualquer pessoa responsável e dotada de bom senso sabe o que deve entender-se por bom e mau neste domínio[5]. Para elaborar criticamente sobre o efeito dos conteúdos de um determinado media – no caso, a televisão – não cuidar de olhar de uma forma mais fina esta fronteira, resulta numa opção por uma abordagem simplista e superficial. É que, no domínio dos valores, dos critérios e das atitudes, as mensagens podem não ser óbvias. Nem sempre um programa isento de sexo, violência ou sensacionalismo é, só por isso, bom. Pode ser péssimo. Verdadeiramente pornográfico. E o inverso, também é verdadeiro. A associação estreita do “mal” ao sexo, violência e sensacionalismo é, por isso, perigosa, nomeadamente por nos deixa indefesos, quando não o deveríamos estar.

Aliás, é útil recordar que esta visão linear do “bom” e do “mau” foi um dos factores que fez ruir o Bloco de Leste. Com efeito, antes da queda do Muro, a grande preocupação dos dirigentes da Alemanha de Leste com as emissões das televisões ocidentais eram os conteúdos da informação. Na sua leitura, aí estava o “mal”. Por isso, respondiam como podiam, através da contra-programação. Enganaram-se, no entanto. O “mal”, que corroeu as bases do regime e o fez desabar, estava sobretudo na publicidade, na miragem do consumo, nas “inocentes” imagens da expressão do nível de vida no Ocidente.

Numa análise séria da qualidade televisiva é, por isso, essencial estabelecer critérios-base, sobre o que entendemos ser desejável ou indesejável, “bom” ou “mau”, mesmo que tal tarefa não seja simples. Mas o simplismo só gera superficialidade e, normalmente, erro.


Uma outra dimensão que é criticada refere-se ao argumento dos programadores de televisão que dizem colocar no ar os programas que o público quer ver, não fazendo mais do que a vontade deste. Popper contesta fortemente esta tese dizendo, nomeadamente que “tudo o que é possível recolher, eventualmente, são as preferências dos telespectadores, face aos programas que lhes são oferecidos. Esses números não dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director não podia saber que escolhas fariam os telespectadores perante outras propostas”.[6] Para os primórdios da televisão, a que autor se referia anteriormente, esta tese poderia ser verdadeira. Já se torna, no entanto, mais difícil admiti-la de imediato, no quadro de uma oferta exponencial de canais que o Cabo veio trazer – 40 canais - e será virtualmente insustentável no quadro da Televisão Digital, com 500 canais disponíveis para além do Video-on-demand. Hoje em dia, com uma oferta disponível, a todas as horas, de canais temáticos muito diversificados é possível avaliar de uma forma mais exacta o que os telespectadores querem ver. E não é a televisão que Popper sonharia. Acresce ainda que há um histórico de insucessos dos quais é necessário tirar conclusões. Em situação de oferta diversificada, ninguém pode ser obrigado a consumir esta ou aquela opção. Nem ser considerado intelectualmente menor se não optar pela oferta política e culturalmente correcta aos olhos da elite intelectual.

A trilogia “sexo, violência e sensacionalismo (SVS)” é recorrente no texto, constituindo um dos seus núcleos argumentativos centrais. O autor afirma que “de facto, quanto mais uso se fizer destes ingredientes (sexo, violência e sensacionalismo) mais se incita as pessoas a voltarem a pedi-los.[7] Acrescenta mais adiante, sustentado em algumas Escolas americanas, que “se recenseou um número não negligenciável de casos (de violência) em que os autores admitiram terem-se inspirado no que tinham visto na televisão”[8]. Para tornar ainda mais forte a sua argumentação, recorre mesmo à sua experiência pessoal: “Aprendi muito sobretudo em contacto com crianças difíceis, provenientes na sua maioria de famílias onde reinava a violência. Nesses lares as mulheres eram quase sempre vitimas da brutalidade dos maridos; estes eram geralmente alcoólicos e o seu comportamento marcava toda a vida familiar. Era esse o esquema típico de confrontação das crianças com um ambiente violento. Hoje em dia a violência deslocou-se e, apoderando-se dos ecrãs da televisão. É aí que as crianças contemplam a violência dia após dia, durante horas.”[9]


Aparentemente parecem ser argumentos fortes e sustentados. Mas será mesmo assim?


É claro e evidente que se partilha com o autor a convicção que muitas das expressões de SVS são ferramentas de captação da atenção dos espectadores, desenquadradas e manipuladas e que desejavelmente deveriam ser evitadas ou, no mínimo, devidamente contextualizadas. Já o mesmo não acontece com o argumento que obrigatoriamente “mais gera mais”. Há um princípio chave na comunicação que nenhum profissional ignora: o limiar de saturação do espectador. A atenção e o interesse de uma plateia de espectadores não se fixa indefinidamente. Sobretudo se se for repetitivo. E nas matérias de SVS, os limiares de saturação podem ser atingidos facilmente. Um exemplo disso mesmo é citado no livro, já na parte final de Jean Baudoiun: “assim o célebre senador McCarthy beneficiou amplamente da retransmissão televisiva dos debates das comissões anti-americanas antes de ser, por sua vez, vitima do rolo compressor mediático tendo os seus excessos verbais e as suas retóricas vibrantes acabado por irritar mesmo os que o tinham plebiscitado.”[10]


Mais duvidoso é ainda, no nosso entender, o principio da reprodução da violência que se vê na televisão, sustentado no princípio – muitas vezes, verdadeiro – também repetido pelo autor, que crianças que foram vítimas de violência reproduzem esses comportamentos violentos no futuro. Ora esta equivalência da “violência vivida/sofrida” com a “violência vista” na TV parece ser um salto lógico insustentável. É óbvio e evidente, que não tem qualquer comparação possível o impacto psicológico para uma criança o ser vítima de maus tratos e viver um ambiente violento na sua família, com a visualização no ecrã de televisão de imagens de violência, provindas na sua maioria de narrativas ficcionadas, com as quais nada tem a ver e que não atinge nenhum elo da sua estrutura de laços afectivos. Como não é comparável ver um filme de guerra ou estar na guerra. Estar no meio de um tiroteio ou vê-lo na televisão... A violência real não tem nada a ver com a violência televisionada. É tridimensional e pluri-sensorial. Pode atingir-nos, bem como às pessoas de quem gostamos.


Acresce que há outros elementos a ter em conta, numa análise científica de nexo causal entre “ver violência na televisão” e “reproduzir violência ao vivo” que, no mínimo, desperta interrogações:


a) a televisão tem cinquenta anos de expansão. A violência na Humanidade, que sempre existiu como parte da sua natureza imperfeita, mudou significativamente por causa da televisão? Ironicamente, poderíamos perguntar quantas horas de televisão viu Jack, o Estripador...


b) se milhares/milhões de crianças assistem ao mesmo regime (tipo e intensidade) de programas com expressões de violência por não desenvolvem todos a mesma resposta? Porque só alguns são afectados? Os que são afectado, se não tivessem visto televisão, não manteriam os mesmos traços?


c) As crianças que não têm acesso a televisão, por viverem em ambientes no limiar da pobreza estão isentas das sementes de violência e são as mais pacíficas do planeta?


Mas Popper, honra lhe seja feita, não se fica pelas críticas como muitos outros que a elas se limitam. Procura, tateando, avançar com algumas pistas interessantes, da quais, na nossa opinião, a Educação para os Media é a melhor aposta. Mas a sua proposta mais original tem a ver com a ideia de um código deontológico para os profissionais de televisão, ancorado a uma Ordem profissional. “Seria levar que as pessoas que se destinassem a fazer televisão a compreenderem que iriam participar num processo de educação de alcance gigantesco. [11] . Não abandonando a correlação televisão-educação, vê nessa abordagem uma forma de auto-regulação que, infelizmente, as experiências tentadas tem vindo a desacreditar.


Na recta final, o autor aborda uma dimensão mais política do tema, salientando desde logo que “a democracia consiste em submeter o poder político a um controle. É essa a sua característica essencial. Numa democracia não deveria existir nenhum outro poder incontrolado. Ora, a televisão tornou-se hoje em dia um poder colossal; pode mesmo dizer-se que é potencialmente o mais importante de todos. (..) Nenhuma democracia pode sobreviver se não puser cobro a esta omnipotência.”[12]


Sendo que em relação ao princípio enunciado há acordo, difícil é antever como o colocar em prática sem ferir outros valores igualmente relevantes, como a liberdade de expressão, a concorrência ou a diversidade político-cultural. E uma das pistas mais interessantes, é apontada nesta obra, através do apelo a uma “Ética da responsabilidade”, assim enquadrada: “As melhores instituições , os procedimentos mais subtis não servirão de nada se os seus habitantes e utilizadores renunciarem efectivamente ao seu dever de cidadania. Uma sociedade aberta é uma sociedade que não procura destituir os seus membros de responsabilidade pessoal, mas que, pelo contrário, cria condições para que eles possam exercê-la serena e activamente. “[13]


Não fora o facto de Sir Karl Popper citar desde o início do seu texto, John Condry provavelmente este passaria despercebido. Sem o crédito do curriculum como Popper a seu favor, mas porventura merecendo respeito pelo esforço desenvolvido em algumas investigações neste domínio, Condry revela-se excessivo, desde logo, nas primeiras frases:


“ O desenvolvimento dos transportes modificou o tecido urbano, destruindo os antigos bairros e decompondo, assim, as infra-estruturas sociais. A família parece totalmente desorientada; a escola funciona mal, quando funciona. Os testes propostos aos alunos revelam que o nível escolar está em baixa constante há vinte anos e segundo parece não se anuncia qualquer melhoria. O número de suicídios e homicídios aumenta um pouco todos os dias. Muitas crianças exibem sinais de perturbações físicas e psicológicas. Poderá a televisão ser responsável por tudo isto?[14]


O espantoso é que, ao longo do seu texto, embora nunca o afirme peremptoriamente, nunca nega este possibilidade. Ou seja admite a possibilidade da televisão ser a mãe de todos os males, mesmo daqueles que cronologicamente a antecedem... Ora a credibilidade dos argumentos que visam sustentar uma tese destas está, à partida, ferida de morte.


Diz Condry que “a televisão é uma ladra de tempo. Quando as crianças vêem televisão durante horas, perdem o benefício de outras actividades que poderiam a longo prazo ser muito mais importantes para o seu desenvolvimento”[15].


Mas, se não existisse televisão, era certo e seguro que as alternativas se concretizariam realmente? Com as exigências colocadas nos ombros dos pais que cada vez mais se vêem obrigados a trabalhar os dois, em horários alargados, com tempos alargados consumidos pelos transportes,...como conciliar com a desejável disponibilidade para os filhos? É evidente que, muitas vezes, a televisão ao invés de ser a causa é a consequência de um círculo vicioso (a babysitter electrónica) da vida moderna sem tempo para a família, onde as crianças passam demasiado tempo sozinhas.

Os argumentos taxativos de Condry continuam: “Verificámos que em televisão o grau de moralidade dependia de quem a realizava: uma conduta é julgada imoral ou moral conforme é tida por uma personagem que se admira ou de quem se gosta ou por uma personagem antipática e de quem se desconfia.[16]

Caso para exclamar: E na vida real, como é? Não existe sempre e em qualquer circunstância uma subjectividade afectiva nos nossos julgamento? Porquê então sublinhar um traço universal, como se esta fosse específica do universo televisivo?


Muito interessante é, a certa altura, do texto, o autor questionar: “Será excesso de romantismo recordar que, nos séculos anteriores, as fábulas e os contos ocupavam grande parte da vida das crianças..hoje, em muitas famílias a televisão substitui os contos por histórias modernas, homogéneas mas menos coerentes[17]


Ora este exemplo é paradigmático de uma leitura demagógica deste tema. Deixando de lado a sempre desejável interacção pais-filhos, seja á volta de um conto, de um passeio, de um filme ou de um jogo de computador, importa recordar que a violência não é exclusivo das “histórias modernas” da televisão. Pelo contrário, muitos dos contos tradicionais tem marcas fortíssimas de violência. Como poderíamos classificar a cena na “Branca de Neve e os Sete Anões” em que a bruxa (expressão de violência e fealdade) manda arrancar o coração da Branca de neve e o caçador engana-a levando-lhe um coração de veado ainda a bater? Ou que dizer de Hansel e Gretel abandonados pelos pais na floresta, para aí morrerem à fome; ou do Capuchinho Vermelho a quem o lobo que come a avó - de quem a criança tanto gostava - e que os caçadores posteriormente matam o dito lobo e lhe abrem a barriga para retirarem a pobre avó,... ou a morte da mãe do Bambi ou do pai Rei Leão, factos que as crianças não deixam de projectar nos seus próprios país....Queremos exemplos de maior violência afectiva?


Finalmente, também John Condry defende a importância da educação para os media, quer no universo familiar, quer na escola. Sublinha que “A televisão é responsável pelo conteúdo dos seus programas mas o uso que as pessoas fazem da televisão não depende dela.”[18]

E com isso, concordamos.



  1. A perspectiva de Bourdieu sobre os mecanismos de censura no universo televisivo



Pierre Bourdieu, sociólogo francês de grande prestígio, resolveu, à semelhança de Popper, elaborar sobre Televisão, publicando uma pequena mas muito interessante obra – “Sobre a Televisão” - que, sem grande surpresa, gerou enorme polémica.


Centrado mais nos fenómenos associados ao Jornalismo e à Informação em Televisão, Bourdieu vai, ao longo do texto, procurando “desmontar” um sistema televisivo que considera ser manipulador e limitador, através da censura. Diz, desassombradamente, que "o acesso à televisão tem como contrapartida uma formidável censura, uma perda de autonomia ligada, entre outras coisas, ao facto de que o assunto é imposto, de que as condições de comunicação são impostas e sobretudo a limitação de tempo impõe ao discurso restrições tais que é pouco provável que alguma coisa possa ser dita”.[19] Esta visão embora compreensível e com uma parcela de verdade, evidencia, no entanto, uma presunção que não é pequena, bem como um desrespeito (recusa?) pelas regras próprias da comunicação audiovisual. Todos os media tem uma especificidade própria que não pode/não deve ser ignorada, nem sequer pelos convidados que por lá passam. A bem da comunicação.


Esta lógica de censura, segundo o autor, manifesta-se também em formas mais subtis onde se usam estratégias como “ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar,..ou mostrando o que é preciso mostrar mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade[20]


Mas não iliba de critica violenta os que, tendo consciência que as regras do jogo que a Televisão impõe, as aceitam: "ao aceitar participar sem se preocupar em saber se poderá dizer alguma coisa, revela-se muito claramente que não se está ali para dizer alguma coisa, mas por razões outras, sobretudo para se fazer ver e ser visto... tela de televisão, espelho de Narciso.”[21] .


É interessante que, para o autor, esta sede de protagonismo, própria de quem sabe que “só existe aparecendo”, não se limita aos lideres políticos ou estrelas do firmamento mediático. “É preciso cada vez mais produzir manifestações para a televisão, isto é manifestações que seja de natureza a interessar às pessoas de televisão dadas as suas categorias de percepção” [22]Também um simples cidadão sabe que para a sua intervenção de protesto ter sucesso precisa da televisão, ou pior, mesmo sem razão um qualquer cidadão se transforma perante uma câmara de televisão. Pior, quando está em “matilha”.


Para o outro lado da câmara distribui também criticas sistemáticas. Dos jornalistas diz que “têm óculos especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem.. eles operam uma selecção e uma construção do que é seleccionado[23] e que, grosso modo, “interessam-se pelo excepcional, pelo que é excepcional para eles. (..) esta busca interessada, encarniçada, do extraordinário pode ter, tanto quanto as instruções directamente políticas ou as auto-censuras inspiradas pelo temor da exclusão, efeitos políticos”[24]Este mecanismo conduz a que não há discurso nem acção que para ter acesso ao debate publico não deva submeter-se a essa prova de selecção jornalística isto é, a essa formidável censura que os jornalistas exercem sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes interessar[25].


A esta visão, Bourdieu acrescenta um conceito interessante a que chama a “circulação circular da informação” entre os jornalistas que “se lêem uns aos outros, escrevem uns para os outros e são influenciados uns pelos outros, além de estarem em concorrência directa uns com os outros.. “ . No entanto, no desencadear o início da “circulação circular” a televisão tem um papel muitíssimo importante, pois “se acontece que um tema seja lançado pela imprensa escrita ele só se torna determinante, central quando é retomado pela televisão” [26].


Não refere para concluir, mas na sua lógica poderia fazê-lo, que as redacções estão cada vez mais cheias de jovens jornalistas cheios de ambição, na proporção inversa da sua maturidade e experiência, que flutuam entre a grande permeabilidade à manipulação e a falta de escrúpulo, enquanto manipuladores. Chega-lhe sublinhar a predominância dos mecanismos da “concorrência económica entre as emissoras ou os jornais pelos leitores e pelos ouvintes, ou como se diz, pelas fatias de mercado, realiza-se concretamente sob a forma de concorrência entre os jornalistas, concorrência que tem os seus mecanismos próprios. “[27]


Mas, evidentemente, esta é só parte da verdade. Muitos exemplos, antigos ou contemporâneos, desmentem esta absolutização do lado negro do jornalismo. Nenhuma palavra é, por exemplo, dita para sublinhar a relevância da multiplicidade das fontes para cruzar e testar a informação, bem como do fenómeno inverso ao descrito – e também observado – de diferenciação dos meios como forma de afirmação da sua identidade própria. Esta força centrifuga, de procura do novo, do original, do “furo” é, provavelmente, muito mais relevante que a força centrípeta que homogeneíza todos os meios.


Valerá a pena sublinhar, neste contexto, que o próprio Bourdieu reconhece – embora não lhe dê o devido valor - que o jornalista está sujeito a permanentes mecanismos de avaliação que o torna “muito mais dependente das forças externas que todos os outros campos de produção cultural, (...) . Ele depende directamente da procura, está sujeito à sanção do mercado, do plebiscito, talvez mais ainda que o poder político. “[28]. No caso, esta “dependência” poderia ser interpretada como um excelente mecanismo de controle externo que permitisse a inexistência de uma impunidade no exercício de uma função social tão importante. Mas o autor não sublinha esses méritos do “plebiscito” permanente sobre os jornalistas.


Uma área que, também por isso, desperta deste sociólogo – como em muitos outros .. – grandes resistências é a correlação entre qualidade, verdade e audiência. Tem muitas dificuldades em assumir que as audiências sejam um critério relevante e, muito menos, que sejam o factor legitimador. O índice de audiência cada vez mais fino dá “o conhecimento muito preciso do que passa e não passa. Essa medida tornou-se o juízo final do jornalismo (..) Há hoje uma mentalidade “índice de audiência” nas redacções. (...) Hoje cada vez mais o mercado é reconhecido como instância legitima de legitimação”. [29] Acresce que, na sua opinião, “pode e deve lutar-se contra o índice de audiência em nome da democracia. Isto pode parecer paradoxal pois as pessoas que defendem o reino do índice de audiência pretendem que não há nada mais democrático (....) que é preciso dar às pessoas a liberdade de julgar, de escolher. O índice de audiência é a sanção do mercado, da economia, isto é de uma legalidade externa e puramente comercial (..) e é o equivalente exacto em matéria de cultura do que é a demagogia orientada pelas sondagens em matéria de política. [30]


É, no entanto, assaz curioso, que se manifeste neste intelectual de esquerda – e em muitos outros - este profundo desprezo pela livre opção do espectador, num quadro de múltipla escolha, ao alcance de um simples click. Provavelmente assumirá semelhante lógica perante opções políticas “erradas” ou consumos culturais “incorrectos”. Sendo que, por si só, a audiência pode não dizer muito sobre a qualidade, já é menos aceitável que se desvalorize o exercício da liberdade individual em prol de uma qualquer decisão pré-estabelecida de “cima para baixo” sobre o que se deve ver. Num tempo em que os mesmos protagonistas defendem um incremento da participação dos cidadãos e que se combate a indiferença abstencionista, não é coerente desvalorizar, a este nível, esta expressão de liberdade de escolha.


Uma outra linha de crítica, mais comum e já vista, centra-se na questão da velocidade e do ritmo. Para ele é óbvio que “a televisão não é muito propícia à expressão do pensamento. Há um elo negativo entre urgência e o pensamento”[31] e que “a velocidade condiciona que a comunicação se processe por ideias feitas, que são entendidas instantaneamente pelo receptor”. Esta preocupação ganha particular ênfase nos casos de justiça popular em se vê “como através dos media agindo como instrumento de informação mobilizadora, uma forma perversa de democracia directa pode instalar-se e fazer desaparecer a distância em vista da urgência, da pressão das paixões colectivas, não necessariamente democráticas, distância que é normalmente assegurada pela lógica relativamente autónoma do campo político. [32]


Não é difícil concordar com aquela tese. A velocidade é inquestionável enquanto traço do quotidiano. No entanto, é a televisão causa desse efeito, um simples reflexo de uma realidade que lhe é externa e que ela importa num fenómeno de mimetismo e de adaptação a um contexto externo? Provavelmente, como em muitas outras respostas, será uma coisa e outra. Mas talvez o peso relativo seja o inverso do apontado pelo autor.




4. A leitura de Ramonet e a tirania da Comunicação


Um outro europeu de fortíssimas raízes na cultura das Luzes, Ignacio Ramonet, director do Le Monde Diplomatique, tem vindo a publicar uma linha editorial muito interessante sobre os media, de onde se destacam “A Tirania da Comunicação” e “Propagandas Silenciosas”.


Também um feroz crítico da televisão, reconhece que “só o que se vê merece ser objecto de informação; aquilo que não é visível e que não tem imagem não é televisivo, portanto não existe do ponto de vista mediático. [33]. Desde logo limita o seu pessimismo e lembra que “ do General Pinochet ao General Jaruzelski todos os ditadores que acreditaram poderem defrontar sem receio as urnas com o pretexto de que controlavam há anos os media, e particularmente a televisão, conheceram um falhanço desastroso. Os franquistas em Espanha e os comunistas na Rússia, apesar do controle absoluto dos media ao longo de decénios, perderam as primeiras eleições livres após a queda dos seus regimes autoritários.”.


Ao contrário das preocupações de Popper, que temia o que teria sido a utilização da televisão por Hitler, Ramonet exemplifica com casos concretos que, nem em regime de ditadura audiovisual, com uma informação totalmente manipulada e uma ausência de alternativas de fontes, se conseguiu o tão propalado controle dos cidadãos, o que, no seu entender, “mostra bem que o controle dos media e o domínio da televisão não ocasionam, automaticamente, o controlo das mentes. Transmitir ideias e influenciar as mentalidades são operações que não têm nada de simples, de mecânico e que continuam a ser de uma extrema complexidade.“[34]

Na sua crítica bem estruturada e recheada de exemplos concretos e muito ilustrativos, converge com os argumentos de Bourdieu no temor da uniformização dos media, sublinhando, ao invés daquele autor, a vantagem da diversidade. Para ele,“o único meio que os cidadãos dispõem para confirmar se uma informação é verdadeira é confrontar os discursos dos diferentes media. Então se todos afirmam a mesma coisa, não nos restam senão aceitar esse discurso único..”[35]. Uma outra preocupação que partilham, agora no eixo da velocidade, expressa-se no que refere ser a diferença entre “o tempo mediático e o tempo político”. “Enquanto este último, como pretendem os fundadores da democracia, deve ser lento para permitir que a razão prevaleça, o tempo mediático atingiu o limite extremo da rapidez: a instantaneidade. O choque entre estas duas dimensões temporais favorece os desvios, que podem revelar-se muito perigosos..”[36]


Mas vai mais longe e mais fundo ao sublinhar uma outra dimensão “ideológica” da televisão expressa no directo e no tempo real . Esta dinâmica supõe que “a imagem do acontecimento ou a sua descrição basta para lhe dar todo o significado. (..) O objectivo prioritário, para o telespectador, a sua satisfação, já não é compreender o alcance do acontecimento mas simplesmente olhar enquanto ele se produz. Assim foi-se estabelecendo a pouco e pouco a ilusão que ver é compreender.”[37]


Este alerta constitui uma das mais-valias relevantes dos contributos de Ramonet. A chamada de atenção para este doce logro, onde os sentidos nos enganam, onde o olhar seguro pode ser completamente manipulado, representa um importante contributo civilizacional.





  1. O Homo Zappiens, na interpretação de João Almeida Santos

Muito inspirado pelo “Homo Videns” de Sartori, João Almeida Santos, na sua obra “Homo Zappiens” vai repegar a constatação crescente, que partilha com Ramonet, da importância e do risco de “ver”: “porque vê julga que sabe, quando o simples acto de ver não ultrapassa a dimensão do acreditar, segundo a velha máxima “ver para crer”.[38]


Nesta linha, vai então configurar a evolução do Homo Videns para o Homo Zappiens, como correspondendo a uma agudização da “velocidade sequencial de imagens, que tende a gerar cegueira e esquecimento, que tende a petrificar. (..) Querendo ver tudo e saber tudo, acaba por nada ver e nada saber.”[39]


Esta realidade, simbolizada pelo telecomando, empurra o telespectador para um permanente “zapping que só pára quando a imagem é instantaneamente mais forte do que o nosso olhar, já que, tratando-se de uma corrida à imagem, não sobra tempo para a reflexão mediadora e libertadora. Quando pára, a petrificação consumou-se”[40]


Este elemento dinâmico de um percurso sem sentido aparente, simbolizado pelo zapping, é expressão de alienação total e coloca questões vitais para a compreensão de um homem de atenção fragmentada que constrói puzzles sem sentido.


De todos os autores citados, Almeida Santos é o que mais elabora sobre os impactos imediatos da televisão sobre o sistema político. Concordando com o papel incontornável da televisão na vida política, afirma peremptoriamente que “ a televisão tornou-se o centro da vida política. É o novo espaço público da democracia.”[41]


Numa perspectiva algo perversa, sublinha, como os restantes, que “só é real o que é televisivo. As agendas políticas fundiram-se com a cadência televisiva. Os partidos subordinam as suas estruturas orgânicas ao espaço público electrónico. O líder político ou é televisivo ou não é líder. De um grande evento fica o que aparece na televisão[42]


E isto mudou radicalmente a política.


É certo que poucos lideres tentaram resistir a esta tendência sob a risco de “não existirem” e a grande maioria foi-se adaptando a este novo formato de fazer política. Na sua linguagem optam agora por “falar por imagens facilmente compreensíveis, de adoptar um estilo de “petit phrase”, a lógica dos bons títulos de jornais, a eficácia das manchetes, o slogan , a linguagem publicitária e a lógica do consumo. A velha ideologia, de antiga matriz cultural, está a sucumbir progressivamente às mãos da nova ideologia publicitária, de moderna matriz comercial, numa vertiginosa corrida ao pequeno ecrã, lugar privilegiado da disputa política”[43]


É interessante observar na reflexão do autor a comparação que faz entre a televisão e os grandes partidos. Nessa perspectiva, “ambos dão ao público aquilo de que é suposto o público gostar. A televisão gere os gostos e desgostos de maior audiência, tal como os partidos gerem os poderes e os equilíbrios maioritariamente existentes. Por isso, é tão difícil aplicar um reformismo forte à televisão como ao poder institucional. Ambos sofrem de um controlo remoto de um público que supostamente não gosta de modificar hábitos adquiridos e práticas consolidadas...”[44]


Para um purista da Política, toda esta evolução é pouco menos que horrível. A questão está em saber se existe alternativa, nomeadamente se se pode usar o novo meio para o velho fim. Há algumas razões de esperança. Como o autor sublinha, inúmeros fenómenos políticos não teriam sido possíveis sem a Televisão. E se Ramonet lembrava o logro de Timisoara – o massacre que nunca existiu – Santos recorda a Perestroika ou a queda do Muro de Berlim. E nós poderíamos acrescentar Timor.


Mas se no presente do Homo Zappiens está já a transição da democracia representativa para a democracia mediada, avizinha-se com o desenvolvimento dos novos media, a evolução(?) para a democracia directa. É evidente que esta possibilidade desperta as maiores reservas a Almeida Santos. “Poder-se-ia sufragar permanentemente aos grandes decisões políticas. A questão que todavia se põe é se a delicadeza e a fragilidade do sistema democrático é compatível com esta cadência. Votando permanentemente não se tornaria o voto excessivamente volátil, banal e frequentemente instrumental? (..) Não se iniciaria um processo desgastante e inconsequente de contínua revogação e erosão da autoridade (no sentido de autoria, de interpretação) que se deve exprimir na representação política? “[45]


Esta será, provavelmente, uma das próximas grandes discussões da actualidade.





  1. Conclusão: A caixa que vai mudando com o Mundo.


Todos os autores escolhidos, ainda que por caminhos distintos, estruturam o seu pensamento numa lógica causa-efeito. Ou seja: a televisão, porque é assim, causa/provoca um determinado conjunto de efeitos. que todos crêem ser muito relevantes.


Ora, apesar de parecer indiscutível esta associação, defendidas por tantos e por tão diversos argumentos, não deixa de causar alguma perplexidade, por um lado, a convicção excessiva na força explicativa de uma só causa para tantos efeitos e, por outro, a suposta irrelevância de outras dinâmicas sociais. É bom ter em conta que explicações univectoriais e lineares, nas sociedades complexas, só podem ser frágeis.


Por um momento, embora contrariando a corrente maioritária dos pensadores, poderemos pensar a televisão como uma consequência da sociedade contemporânea? Como expressão, em tempo real, das tendências, dos critérios, dos valores?


Admitamos que sim.


A Televisão está radicada numa Sociedade e nos seus valores, com eles interagindo permanentemente. Sujeita nas sociedades ocidentais, de economia de mercado e de baixo grau de intervencionismo do Estado, a regimes concorrenciais muito fortes, depende das audiências, que são voláteis e cada vez mais infiéis. Por isso, à semelhança de muitos outros produtos, ambiciona identificar-se com as aspirações do seu público-alvo, aproximando-se o máximo da sua “textura”, garantindo a sua adesão. Qual camaleão, em relação aos diferentes segmentos, às diferentes modas, às oscilantes flutuações, procura conquistar e fidelizar públicos. E só o pode fazer se os satisfizer. Num quadro de oferta múltipla – dezenas de canais – ganhará aquele que consiga melhor identificar-se com o(s) publico(s) em cada momento. Têm sucesso os projectos que “encaixam” no seu público.


Por isso, a Televisão é obrigada a ser um espelho.


Sempre que algum projecto alternativo tenta um caminho distinto – ser causa em vez de espelho – assumindo normalmente a bandeira da “qualidade”, tem o sucesso da dimensão do público que em determinado momento se revê naquele canal. E nada mais. Por via da diversidade de oferta já não é possível impor o “consumo obrigatório” e, mesmo que o fosse, é altamente duvidoso se isso seria suficiente para influenciar alguém.


Mas então quais são algumas das influências essenciais[46] a que está sujeita a televisão nos nossos dias?


1.Velocidade


Já foi dito que uma das dimensões mais marcantes deste final de século é a afirmação da Velocidade como dado incontornável da nossa vida em sociedade. A aceleração ocorrida na segunda metade deste século, atravessa hoje a economia, a cultura, o lazer e a política. E as velocidades relativas originam atrasos que se vão tornando absolutos.


O tempo - cada vez mais o vector estratégico determinante - é “expandido” por esta velocidade crescente que permite albergar mais e mais acontecimentos nos mesmos minutos. Ao nível psicológico, esse facto gera mutações relevantes, como seja a paciência para a espera que decresce significativamente – a impaciência é a nova regra - e a afirmação da superficialidade como resposta natural ao convívio com a velocidade.


A trepidação da velocidade conduz também a uma definição instável das fronteiras. É curioso que um dos livros que vai fazendo moda actualmente – Blur , The Speed of change in the connected economy[47] - sustenta ser a velocidade (com a conectividade e os intangíveis) o elemento central da mudança actual que nos conduz a um conceito de “desfocagem” (Blur) em que as linhas divisórias clássicas (entre produtos e serviços, consumidores e produtores , empregados e empregadores) se atenuam. Também o livro de Bill Gates, “Negócios@velocidade do pensamento – com um sistema nervoso digital” se centra nesta perspectiva de valor crítico da velocidade no quadro da nova economia.


Esta velocidade crescente tem como consequência, nas palavras de Giddens[48], vivermos mais perto de estar dentro de um carro desgovernado do que dentro de um automóvel cuidadosamente conduzido. Essa incomodidade é particularmente sentida por instituições que subjugam a velocidade a atitudes/valores como a reflexão, a serenidade e o conservadorismo enquanto características estruturantes, como é o caso das Igrejas e da Escola.


Não foi a Televisão que “inventou” a Velocidade. No entanto, porque é espelho, adapta-se a este ritmo que a cerca e entra na cadência da vida moderna.


2. Ciclos Curtos


À velocidade soma-se uma outra dimensão determinante: os ciclos curtos.


Nada dura muito.


O que alguém descreveu como a Era do Descartável assume-se cada vez mais como universal – apesar do reciclável também ser moda. Este fenómeno que já Mermet[49] descreve como o do Homo Zappens, (antes de Almeida Santos..) a partir da observação do comportamento humano face ao telecomando da televisão, é transponível para vários domínios da vida: a sucessão de várias vidas conjugais, a mudança frequente de emprego, a renovação de guarda-roupa, a variação de hobbies ou de locais de férias são alguns dos exemplos. Este cenário é reforçado nas novas gerações com a cultura visual do video-clip marcada pela cadência curta da duração dos planos escolhidos e, mais recentemente, pela dinâmica da navegação na Internet ao sabor do click do rato que faz saltar de página em página, de ideia em ideia. A Moda foi das primeiras indústrias a sustentar a sua actividade num conceito de ciclos curtos – as estações – como forma de diálogo com os seus consumidores. Sucessivamente esse posicionamento tem sido adoptado por outras actividades, com teorizações cada vez mais finas sobre o ciclo de vida de um produto, de uma empresa e não tardará que se estude o ciclo de vida de uma ideia, de uma tendência, concluindo seguramente que a sua duração é cada vez mais curta. As teses de Lipovetsky no “Império do Efémero” são particularmente interessantes.

Um olhar possível para as consequências desta tendência faz sobressair a instabilidade, a volatilidade ou a infidelidade como preço a pagar. Outros salientarão o enriquecimento provocado pelas experiências como ganho principal.


A Televisão aprendeu a adaptar-se a esta tendência. Na construção da narrativa dos seus produtos, na dinâmica da sua programação, na curta duração dos seus ciclos ..


3. Império do Novo


Como causa e consequência da velocidade somada aos ciclos curtos observa-se um verdadeiro império do Novo. Só o que é novidade tem existência mediática e fixa a atenção do consumidor. Este, é infiel e está sempre disponível a mudar os seus hábitos de consumo privilegiando o novo e a experimentação, em detrimento da fidelização a uma marca ou ideia. Os comunicadores do mundo dos media, do marketing ou da publicidade vivem permanentemente este desafio – que, por vezes, se transforma em pesadelo – de inventar e re-inventar respostas novas para as necessidades (antigas ou recentes) dos seus clientes.

Visto do lado positivo, aí está uma excelente oportunidade que o mundo moderno oferece ao mercado da inovação e às Indústrias da criatividade, proporcionando-lhes espaço e tempo para a sua intervenção. Do outro lado da moeda, como sustentar o que é perene e imutável, por exemplo, ao nível dos grandes valores? Serão também eles vítimas da erosão da “não-novidade”?


A Televisão evidencia isto todos os dias. Desde as novas propostas de programas, cenários, promoções.. que constantemente vão surgindo até ao espantoso número de actores novos nas séries e novelas portuguesas, procurando introduzir novas caras....



4. Abundância e Diversidade


Um outro traço particularmente importante é a abundância e a diversidade que a maioria dos cidadãos europeus dispõe, em vários planos. A diversidade da oferta disponível, de todo o tipo de bens e serviços sustenta a concorrência e transferiu o poder do produtor para o consumidor. Hoje, cada cidadão, se quiser e souber, tem na sua mão a gestão das suas escolhas e assim pode influenciar decisivamente o mercado. Esta nova realidade levou um dos últimos Prémios Nobel da Economia ao corolário “Na economia da abundância, o recurso escasso é a atenção” que situa bem o cerne do novo combate dos produtores de informação: captar (e fidelizar) a atenção dos seus potenciais clientes.


Essa abundância e diversidade é particularmente visível nos recursos de Informação e Conhecimento que se multiplicaram exponencialmente nos últimos anos e ficaram acessíveis em novos canais massificados. Esta avalanche de informação, exige hoje uma enorme capacidade de separar “trigo do joio” e de garantias de qualidade e credibilidade das fontes disponíveis.


Na Televisão, 40 Canais de Cabo, 24 sobre 24 horas de emissão,....



5. Prazer


O futuro próximo confirmará seguramente esta tendência crescente de exigência de prazer, como condição quase indispensável, revelando uma baixa tolerância à carência de prazer. Já não há óleo de fígado de bacalhau como antigamente, ir ao dentista já quase não dói e desde o Prozac ao Viagra de tudo se tem inventado na busca do prazer perdido. O que alguém já chamou Geração “Bife do Lombo” não valoriza o sacrifício ou o sofrimento como valores em si mesmo, nem age sobretudo por dever. Esta mudança estrutural tem múltiplas implicações, como se imagina e atinge todas as esferas do comportamento humano.


A versão Telescola não tem mais lugar na Televisão moderna. O ambiente exige cada vez mais às televisões que cuidem do aspecto visual dos seus produtos, façam o espectador sentir-se bem ..



6. Interactividade


Uma das tendências que tem vindo a consolidar-se é a interactividade. A passagem progressiva da hegemonia da oferta/produtor para a força da procura/consumidor transferiu o poder. Agora quem manda -mesmo que ainda não o tenha percebido - é o consumidor e a sua “voz” é ouvida com toda a atenção. Esta interacção que se expande a todos os campos de actividade humana – na política é cada vez mais usual “governar por sondagens” – torna-se cada vez mais instantânea, o que condiciona definitivamente todos os processos e desenha um novo tempo em que cada cidadão pode potencialmente interagir, em tempo real, com tudo o que o rodeia. Essa tendência está a ser reforçada nas novas gerações por efeito do multimédia interactivo. Os jogos de consolas e de computador desenvolvem a capacidade de apreender uma estratégia, aprender por tentativa-erro - podendo corrigir os erros imediatamente e recriar as situações - e persistir sempre até atingir o resultado esperado. Introduzem novos esquemas de observação/atenção e induzem novos registos de reactividade, interacção e espectacularidade. Os jogos de consola, os CDROM e a Internet são, pois, a primeira vaga dessa nova realidade que conformarão novos cidadãos que estão “habituados” a interagir com tudo o que lhes interessa.


Esta é uma tendência a que a Televisão já dá alguma resposta, nomeadamente em diferentes espaços lúdicos (concursos, passatempos,debates, sms..) mas na qual terá que ir mais além. A Televisão interactiva representará um passo nesse sentido.




7. Mobilidade


A capacidade actual de mobilidade, em vários registos, é impressionante. Essa tendência sustentada, na dimensão física, na convergência da abolição progressiva de fronteiras antigas (geográficas, culturais e linguísticas, por exemplo) com a facilitação crescente (em tempo e custo) das deslocações, está a provocar alterações relevantes na nossa forma de pensar e agir. No contexto europeu, a livre circulação é mesmo um conceito estruturante da Comunidade. Mas há também uma outra dimensão de mobilidade virtual permitida, por exemplo, pelas comunicações móveis que tiveram um sucesso espantoso nos últimos anos, bem nas possibilidades que outras potencialidades das telecomunicações permitem – “ir e estar” sem sair do mesmo sítio – bem patentes na teleconferência, no acesso a uma mesma caixa postal electrónica em qualquer parte do mundo, nas visitas virtuais, ou na participação em grupos electrónicos de debate.


A pressão sobre os serviços noticiosos que vão aos sítios, façam directos, enviem correspondentes e até mesmo os pivots se levantem da cadeira e passeiem no estúdio ou se desloquem em emissões especiais para outros espaços de apresentação do noticiário, são alguns traços de uma “televisão em movimento”.



8. Os novos anciãos


Nesta senda de transformações sociais, os jovens emergem como os “novos anciãos” que, à semelhança do papel antigo destes, têm um relevante ascendente social, determinam comportamentos e constituem-se como modelos. O pós-figurativismo, desenhado por Margaret Mead, implica uma influência ascendente nas gerações, com os mais novos a possuírem uma capacidade de influência determinada pelos seus saberes específicos e pela melhor sintonia com as tendências e as linguagens emergentes a que corresponde uma permeabilidade das gerações mais velhas a essa “aprendizagem”. A fácil relação com as novas tecnologias simboliza bem a ascendência das novas gerações que possuem novas competências altamente valorizadas na dinâmica social contemporânea.


Um dos exemplos interessantes em que a Televisão agarra esta tendência, passa pelo protagonismo juvenil nas séries de televisão ( a TVI obteve um enorme sucesso com séries portuguesas que quase sempre têm papeis importantes entregues a crianças e jovens). Noutro registo, os programas de maior sucesso, como o Chuva de Estrelas, são palcos de modelos jovens. Por outro lado, a idade média dos apresentadores de noticiários corresponde a este modelo dos novos anciãos..




Na perspectiva que aqui se propõe, são estes alguns dos eixos civilizacionais das sociedades modernas, que constituem a “pauta” pela qual os programadores de televisão organizam a sua grelha, procurando agradar ao público, não por qualquer razão de princípio ou ideológica, mas muito mais num sentido pragmático de Camaleões que necessitam da audiência para sobreviver.


É evidente que não se ignora um retro-efeito positivo que a televisão produz sobre estes eixos, reforçando-os e ajustando-os. Dessa forma, a Televisão, é também Causa/Origem. Mas apenas acessoriamente.


Só que, ao invés dos pessimistas, acreditamos ser possível o desenvolvimento de mecanismos específicos – que podem e devem ser reforçados – para influenciar decisivamente os conteúdos e formatos televisivos, na sua dimensão de Causa/Origem, sem ter que abdicar de valores como a liberdade de expressão, a diversidade da oferta e a concorrência entre modelos distintos.


Recuperando o título duma famosa série: “Televisão, a caixa que mudou o mundo” talvez fosse mais adequado substituí-lo por “Televisão, a caixa que vai mudando com o Mundo”...






Bibliografia



Popper, K. ; Condry, J. “Televisão: um perigo para a democracia”; Gradiva; 1995


Bourdieu, P. ; “Sobre a Televisão“, Jorge Zahar Editor Lda, ; 1997


Ramonet, I. “A tirania da comunicação” , Campo das Letras, 1999


Almeida Santos, J.; , “Homo Zappiens” , Editorial Notícias, 2000


Marques, R. “O Centro da Educação (visto de fora)” Fundação Calouste Gulbenkian, 2000


[1] In Popper, K. ; Condry, J. “Televisão: um perigo para a democracia”; Gradiva; 1995; pag. 16 [2] ibidem, pag. 17 [3] ibidem, pag. 18 [4] « Chamo sociedade fechada à sociedade mágica ou tribal e aberta à sociedade na qual os indivíduos se confrontam com decisões pessoais” J. Badouin citando K. Popper (pag.76) [5] ibidem pag. 17 [6] ibidem pag 19 [7] ibidem pag 20 [8] ibidem pag 22 [9] ibidem pag 24 [10] ibidem pag 80 [11] ibidem pag 26 [12] ibidem pag. 29 [13] ibidem , pag 76 e 77 [14] ibidem pag 34 [15] ibidem pag 40 [16] ibidem pag 58 [17] ibidem pag. 64 [18] ibidem pag. 66 [19]in Bourdieu, P. ; « Sobre a Televisão », Jorge Zahar Editor Lda, ; 1997; pag 19 [20] ibidem pag 24 [21].ibidem, pag. 16 [22] ibidem pag. 30 [23] ibidem pag. 25 [24] ibidem pag. 27 [25] ibidem pag 67 [26] ibidem pag 71 [27] ibidem pag 58 [28] ibidem pag 76 [29] ibidem pag 37 [30] ibidem pag 96 [31] ibidem pag 39 [32] ibidem pag 92 [33] Ramonet, I. “A tirania da comunicação” , Campo das Letras, 1999, pag. 27 [34] pág. 26 [35] ibidem pag. 45 [36] Almeida Santos, J.;, Homo Zappiens , Editorial Notícias, 2000 pag. 71 [37] ibidem pag. 123 [38] pag. 22 [39] pag. 24 [40] pag. 28 [41] pag. 99 [42] pag. 39 [43] pag. 99 [44] pag. 13 [45] ibidem pag. 33 [46] A partir de um trabalho do autor sobre “O Centro da Educação” para uma obra prospectiva sobre a Educação em Portugal - 2000/2020 , dinamizada pela Fundação Calouste Gulbenkian [47] de Stan Davis e Christopher Meyer, do Ernst&Young Center for Business Inovation, 1998 [48] in A. Giddens, “As consequências da modernidade”, Celta Editora, 1998 [49] in G. Mermet, Tendences 1998 - “Les nouveaux consomateurs”, Larousse, 1997


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