José Costa Ramos / Pedro Góis / Rui Marques

A figura de Steve Jobs, fundador da Apple, tem inspirado múltiplos livros, artigos e documentários. A sua morte recente reacendeu a atenção sobre o percurso de vida deste americano que, não tendo ido além de cinquenta e seis anos de vida, revolucionou a tecnologia e a cultura digital na transição do século XX para o XXI. Mas, mais interessante do que as suas conquistas tecnológicas, de design e de marketing, onde pontuam não só os computadores Macintosh, mas também dispositivos como o iPod[i], iTunes[ii], iPhone[iii] e iPad[iv], é penetrar no mundo de Jobs à procura de um significado para esses desenvolvimentos.
O que nos pode ensinar a vida de um homem rejeitado no berço, dado para adoção, criado numa família adotiva modesta, entrado no mercado de trabalho sem curso superior, milionário aos 25 anos com a sua empresa, despedido de uma forma ultrajante dessa mesma empresa, regressando mais tarde para a salvar (com um salário de 1 USD por ano), ídolo para milhões e lutador derrotado contra um cancro do pâncreas? Provavelmente, quase tudo.
O génio humano de Steve Jobs dificilmente cabe em qualquer contentor. Dele provavelmente não se poderá captar mais do que traços e breves retratos. Por isso, escolhemos um olhar com três perspetivas diferentes. Cada um dos autores, a partir da sua subjetividade, iluminará uma face de Steve Jobs que mais o inspira e onde o “senhor Apple” lhe foi mais interpelante. Não se trata, portanto, de uma breve biografia, nem de um simples artigo de elogio póstumo (embora esteja baseado na sua vida e o elogio seja óbvio), mas de texto(s) ao jeito de uma pintura impressionista, sem ambição de abarcar toda a realidade jobiana. Importa juntar um outro aviso: esta não é uma hagiografia. As luzes e as sombras habitaram a vida de Jobs, como de qualquer comum mortal. Mas, ainda assim, tem muito para ensinar.
Steve Jobs, a douta ignorância e a sabedoria louca [v]
“A loucura de Deus é mais sábia que os homens”
1 Coríntios 1:25
Mudar o Mundo 1 : O “Catálogo de toda a Terra”
1968, Steve Jobs tem 13 anos. Richard Buckminster “Bucky” Fuller há muito consolidou a sua reputação de designer, filósofo e homem de génio. Bucky tem uma definição particular de “ferramentas”: “Eu vejo Deus nos instrumentos e nos mecanismos que trabalham com fiabilidade (...)” (Fuller, 1968). Stewart Brand, um licenciado em biologia pela Universidade de Stanford, de 26 anos, admira Bucky e vê no acesso às ferramentas um modo de mudar o mundo. Estamos no Outono e Brand lança o primeiro número de uma publicação que rapidamente se transformará numa referência do movimento da contracultura: o Catálogo de toda a Terra; sobre ele, diz Jobs:
“Quando eu era novo, havia uma publicação incrível chamada Catálogo de toda a Terra, que era uma das bíblias da minha geração. Foi criado por um sujeito chamado Stewart Brand não muito longe daqui, em Menlo Park, que o trouxe à vida com seu toque poético. Isso foi no final dos anos 1960, antes dos computadores pessoais e da edição electrónica, nessa altura era tudo feito com máquinas de escrever, tesouras e câmaras Polaroid. Foi uma espécie de Google em forma de livro, 35 anos antes do Google aparecer: era idealista, e transbordando de ferramentas elegantes e ideias brilhantes” (Jobs, 2005)
O Catálogo de toda a Terra dividia-se em sete secções: 1) Compreender os sistemas globais, 2) Abrigo e uso da terra, 3) Industria e artesanato, 4) Comunicações; 5) Comunidade; 6) Nomadismos e 7) Aprendizagens. Eram cinco as condições para que um produto pudesse constar do catálogo: 1) fosse útil como ferramenta; 2) fosse relevante para a educação independente; 3) tivesse alta qualidade ou baixo custo; 4) não fosse ainda do conhecimento comum e 5) fosse acessível pelo correio.
A capa da primeira edição - o planeta azul na imensidão de espaço negro cobrindo quase toda a página e no cimo aberto a branco: Whole Earth Catalog[vi], em subtítulo: access to tools[vii] -tem uma história que começa dois anos antes. Nessa altura, Brand tinha começado uma campanha para que a NASA[viii] desse a conhecer uma, supostamente existente, fotografia da Terra vista do espaço: a imagem de “Toda a Terra”. Da mesma forma que Hannah Arendt - que a propósito da lançamento do Sptunik 1[ix] em 1957 sugeria que esse acontecimento nos devia chamar a atenção para a Terra como “ a Mãe de todos os seres vivos” e “ quinta-essência da condição humana”(Arendt, 2001, p. 12) - também Brand está convencido que a visão do planeta azul na vastidão do espaço negro dará à humanidade a noção de que a Terra é a sua casa comum. Claro que o subtítulo, “ access to tools” bebia directamente de Buckminster Fully.
A foto da Terra na capa do Catálogo acaba por ser premonitória; no Natal desse mesmo ano o nosso planeta, em todo o seu esplendor, encherá os ecrans de televisão de todo o mundo acompanhado pela voz do comandante da tripulação da nave espacial Apolo 8[x], Frank Borman:
“Deus disse: “Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus, num único lugar, a fim de aparecer a terra seca.” E assim aconteceu.
Deus chamou terra à parte sólida, e mar ao conjunto das águas. E Deus viu que isto era bom.
E da tripulação do Apolo 8, fechamos com boa noite, boa sorte e um Feliz Natal - e que Deus vos abençoe a todos, a todos vós na boa Terra.”[xi]
Mudar o Mundo II: O Computador Pessoal
1975, Steve Jobs tem 20 anos. Ele e o seu amigo Steve “Woz” Wosniak decidem criar um computador pessoal para uso de “comuns mortais”, isto é, não-engenheiros. A ideia terá sido sugerida por Jobs e fortemente influenciada por um grupo de entusiastas de electrónica de Silicon Valley do qual os dois Steves faziam parte: O Homebrew Computer Club. Woz, sozinho e baseado num microprocessador de 8 bits muito barato que tinha acabado de ser lançado, o MOS Technology 6502, desenha as partes mecânicas, os circuitos e o sistema operativo do protótipo de um computador revolucionário, que trabalha com um teclado e um écran. Steve Jobs fica entusiasmado com o resultado e propõe a Woz criar uma empresa para produzir o novo computador: assim nascem a Apple e o Apple I. Ouçamos Jobs:
“Eu tive sorte, encontrei o que gostava de fazer bastante cedo na vida. Woz e eu começamos a Apple na garagem dos meus pais quando eu tinha 20 anos. Trabalhámos arduamente e, em 10 anos, a Apple passou de apenas nós os dois numa garagem para uma companhia de 2 mil milhões de dólares e mais de 4000 empregados.”(Jobs, 2005)
O Apple I obedecia bastante bem às condições do Catálogo de toda a Terra: além de útil, relevante e de baixo custo, não era evidentemente do conhecimento comum. Dois anos depois do seu lançamento, Ken Olson, co-fundador e Presidente da Digital Equipement Corporation afirmava: “Não há nenhuma razão para que alguém possa querer um computador em sua casa” (Himanen, 2001, p. 187).
1984, Steve Jobs tem 29 anos e a Apple lança o computador pessoal Macintosh. O Macintosh é um computador revolucionário devido sobretudo ao sistema de interface com o utilizador que integrava grande parte dos resultados de investigação desenvolvida no Centro de Investigação de Palo Alto da Xerox[xii]. Para o lançamento do novo computador foi encomendado um filme publicitário ao realizador Ridley Scott - Scott tinha feito o filme Blade Runner dois anos antes - que viria a ser considerado um dos melhores filmes comerciais de todos os tempos. O filme tem 1 minuto [xiii]. Num cenário industrial e distópico em tons de cinza uma massa de seres humanos indiferenciados e imóveis olha mesmerizada um ecran onde um Big-Brother - referência ao livro “1984” de George Orwell - anuncia a “ celebração do primeiro glorioso aniversário das Directivas de Purificação de Informação”. Em contraste dramático , uma atleta vestida de cores fulgurantes transportando um martelo de arremesso irrompe, correndo, no cenário perseguida por um grupo de polícias de choque. A gigantesca cabeça no écran continua o discurso enquanto a rapariga se aproxima do écran: “ os nosso inimigos condenar-se-ão à morte, nós vamos sepultá-los na sua própria confusão, venceremos!” no preciso momento em que a palavra “venceremos” é dita, o martelo lançado pela atleta atinge o écran que explode em luz e fumo . O filme conclui com a mensagem: “Em 24 de Janeiro, a Apple Computer lança o Macintosh. Verás porque é que 1984 não será como “1984”. Verdadeiro marco tecnológico da história das tecnologia de informação o Macintosh acaba, no entanto, por constituir um insucesso comercial que conduz à saída de Jobs da Apple, em 1985.
1997, Steve Jobs tem 42 anos e regressa ao comando da Apple. Como um dos primeiros actos de gestão, e inesperadamente para muitos aficionados dos computadores Macintosh habituados a demonizar a Microsoft, Jobs faz um acordo com Bill Gates para resolver diferendos legais e definir estratégias de cooperação futuras entre a Apple e a Microsoft. Ao mesmo tempo define uma nova estratégia de Marketing à volta do tema: Think Different - pensa diferente - que virá a ser um dos slogans que mais contribuirá para a reconstrução da identidade da Apple. Para o efeito foi produzido um filme publicitário de 1 minuto[xiv] a partir de uma montagem de filmes de arquivo a preto e branco que mostram sucessivamente: Albert Einstein, Bob Dylan, Martin Luther King, Jr., Richard Branson, John Lennon, R. Buckminster Fuller, Thomas Edison, Muhammad Ali, Ted Turner, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Amelia Earhart, Alfred Hitchcock, Martha Graham, Jim Henson (com o Sapo Cocas), Frank Lloyd Wright, e Picasso. O texto, dito numa primeira versão pelo próprio Jobs, é dedicado:
“aos loucos, aos inadaptados, aos rebeldes, aos que causam problemas, aos pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêm as coisas de uma maneira diferente. Não gostam de regras e não têm respeito pelo “status quo”. Podes citá-los, discordar deles, glorificar ou vilipendiá-los. A única coisa que não podes fazê-lo é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Eles empurram para a frente a humanidade. Enquanto alguns poderão vê-los como os loucos, nós vemos génio. Porque as pessoas que são suficientemente loucas para pensar que podem mudar o mundo, são aquelas que o fazem”.
Mudar o Mundo III: “Mantenham-se insatisfeitos, mantenham-se loucos”
A história do computador pessoal, e inevitavelmente a história da Apple, está na dialéctica entre o particular e o universal que o Catálogo de toda a Terra enunciava paradigmaticamente. Está na vontade do infinitamente pequeno testemunhado nos circuitos integrados que constituem o núcleo central do computador e na vontade de infinitamente grande que conduz o desenho e a escrita do código da sua programação.
Na década de 70 depois de uma viagem à Índia na qual procura a iluminação Jobs terá dito:
“Nós não íamos encontrar um lugar onde pudéssemos ir por um mês para sermos iluminados. Foi uma das primeiras vezes que eu comecei a perceber que talvez Thomas Edison tivesse feito muito mais para melhorar o mundo que Karl Marx e Neem Kairolie Baba juntos.” (Moritz, 1984, p. 98)
Jobs queria melhorar e mudar o mundo e acreditava que para o fazer tinha que se começar por ter dele uma visão diferente, “pensar diferente”. Jobs acreditava nas “ferramentas” tal como Buckminster Fuller as tinha definido: “instrumentos e mecanismos que trabalham com fiabilidade”. Acreditava na transcendência da tecnologia: a sabedoria técnica tal como nos aparece no mito de Protágoras: como algo que foi roubado aos deuses e que permite aos homens estabelecer uma relação com eles.[xv] Daí a enorme admiração que tinha por Thomas Edison ou Henry Ford.
Paradoxalmente o que caracteriza Jobs não é tanto a sabedoria técnica mas a sabedoria prática que lhe permitiu, no geral, saber o que fazer e não fazer e fazê-lo no tempo certo e na justa medida. Foi precisamente essa sabedoria prática e uma enorme perseverança alimentada de paixão, que lhe permitiu trazer das margens - da contracultura Hippie - todo um manancial de criatividade. Jobs abriu uma porta larga que transformou a inquietação, o desalinhamento, a rebeldia que caracterizaram as décadas de 60 e 70 na costa oeste do Estados Unidos em produtos elegantes, úteis e trabalhando com fiabilidade que mudaram o nosso dia-a-dia e o mundo. Jobs é por direito um dos génios que se atrevem a pensar diferente e por isso mudam não só a sua condição mas também a nossa. Qual a receita? Steve Paul Jobs lega-nos a receita que tinha herdado do Catálogo de Toda a Terra:
“Mantenham-se insatisfeitos, mantenham-se loucos”[xvi]
Steve Jobs: o carisma que criou o homem que recriou o carisma[xvii]
O co-fundador e, até Agosto do ano passado, Presidente executivo da Apple era, certamente, a pessoa mais célebre da área da tecnologia do planeta. Não será uma fabulação afirmar que Steve Jobs não era, para muitos, um vulgar cidadão do mundo aproximando-se de um ser venerado, quase de um ser religioso, um profeta. Como assinalou Weber numa análise aplicável a Jobs, a especificidade dos profetas é que não recebem a sua missão por incumbência dos homens mas usurpam essa missão (Weber, 1963). Na teoria weberiana, o carisma é uma força extraordinária e revolucionária cuja irrupção histórica não se pode reduzir socialmente, já que responde a uma questão de fé e reconhecimento social que em boa parte são arbitrários. Um profeta das tecnologias e um carisma de artista serão características que associaremos para sempre a este americano. A onda de emoção que alastrou por toda a Internet e pelas redes sociais após a notícia da sua morte é uma evidência de quão importante ele foi para muitas pessoas. Os líderes de empresas não costumam ter esse tipo de ressonância social e cultural. As lojas da Apple tornaram-se, minutos após o anúncio da sua morte, santuários improvisados e memoriais de homenagem, algo que podemos dizer com relativa certeza que não vai acontecer em postos de gasolina ou supermercados, quando os presidentes da Exxon Mobil, da Shell ou da Nestlé morrerem.
Steve Jobs tinha carisma, autoridade e uma aura mística, próprias de um líder espiritual de uma tribo. Detinha um certo carisma icónico específico deste início do século XXI que o tornava um equivalente de uma estrela pop. Era um homem que era uma marca que era de um homem. Steve Jobs tinha carisma porque partilhava uma maçã com a História (com Adão e com Isaac Newton, por exemplo) e porque essa maçã era, novamente, um objecto de desejo. Parafraseando Magritte, Jobs tornou possível o aparecimento de um ícone: “this is not an Apple”. Mas não era apenas por isso. O que significa ter o carisma de Jobs? De uma maneira sintética, ter carisma significa ter uma força de personalidade extraordinárias, não acessíveis a qualquer um e de ser capaz de influenciar os que trabalhavam com ele na Apple (de acordo com certas versões às vezes impondo o seu carisma). Numa visão mais ampla poderemos defender que significa que Jobs era carismático no seio de uma comunidade mais vasta: a comunidade imaginada dos utilizadores dos seus produtos e era a personificação de uma espécie de carisma institucional {Weber, 1963).
Este último tipo de carisma confere às instituições de produção ou de reprodução cultural um poder simbólico, no sentido que lhe atribuía Bourdieu, capaz de influenciar a mudança social e de, ao mesmo tempo, promover a acção que resulta da identificação colectiva e emocional a um mesmo líder carismático. Dito de outro modo o carisma institucional, confere aos produtos Apple um poder de conversão mágico, capaz de despertar as virtualidades latentes nos seus utilizadores e, ao mesmo tempo, contribui para o que Max Weber chama de "rotinização do carisma" transformando em instituição durável o que deveria ser um experiência única e reforçando o carisma do seu criador (Weber, 1963). De acordo com estes princípios um líder carismático contribui para a emergência de uma comunidade de indivíduos que partilham gostos, interesses e desejos que contribuem para que a manutenção ou reforço do seu carisma se torne autopoética.
Artista, Criador, Líder
Ao longo do século XX assiste-se a um amplo movimento de heroificação do artista ou do criador, doravante tido como figura carismática, singular e altamente dotada, vivendo num universo à parte e fugindo, muitas vezes, às regras e imposições sociais que regulam a vida do comum dos mortais. Steve Jobs é o arquétipo do artista consagrado, do outsider/insider no mundo da criação, da estrela pop que lidera a criação de um espaço estético próprio. É a incarnação do artista mediático, mediatizável e prestigiado. Um capitalista que acumula capital simbólico, capital cultural e que ao mesmo tempo se torna uma personagem de culto. Um actor social proeminente, que concretiza as ideias de Vilfredo Pareto sobre o papel das elites na mudança social (Pareto, 1963 (1. ed. 1923)). Artista, carismático, criador e elitista são características que podemos associar a Steve Jobs. Criador individual ou criador de criadores? Esta é uma questão de difícil resposta.
Uma das principais preocupações do sociólogo francês Pierre Bourdieu foi, no seu trabalho analítico do mundo da arte e da cultura, a de ultrapassar a ideologia carismática da criação e de enquadrar a criação num processo sociológico não individualizável. Pierre Bourdieu, considera como pré-requisito fundamental de uma sociologia da cultura e da arte, romper com a concepção do artista como criador, com a espécie de ideologia carismática que considera a produção simbólica como o produto encantado de um “milagre social” como um acto puro onde não há outra determinação que a da intenção propriamente estética. Para Bourdieu esta ideologia carismática dirige o seu olhar para o produtor aparente e impede-nos de perguntar quem criou esse criador e o poder mágico de transsubstanciação com que o criador é empossado (Bourdieu, 1979). A ideologia carismática do génio artístico enquanto indivíduo parecia, a partir desta análise, não ter possibilidade de resistir à aproximação crescente entre o trabalho artístico e outras formas de produção características do final do século XX, característica dos mundos da cultura (Becker, 1982), mas o trabalho de coordenação geral de Steve Jobs à frente da Apple tornou esta certeza menos certa. Aliás, inverteu esta certeza tornando-se e tornando a Apple iconossemiótica pela acção do seu carisma.
De volta ao carisma: passos em volta de um homem
Escrevendo no início do século XX, Max Weber perguntou-se por que as pessoas seguiram os desejos e exigências dos outros, na ausência de coacção directa. Para Weber havia três fontes de autoridade legítima: carismática, tradicional e legal-racional. O primeiro tipo baseia-se na lealdade a uma pessoa específica. Alguém segue uma pessoa por causa de quem ele/ela é. O segundo tipo baseia-se na lealdade à tradição. Alguém segue uma pessoa, porque eles/elas desempenham um papel tradicional, como o de Pai/Mãe, de líder religioso ou de treinador. E o terceiro tipo assenta na fidelidade a um conjunto de regras codificadas que são aceites por princípio: alguém segue uma pessoa por via da concordância com a posição social que ocupam, como o ser Juiz, ou ser Supervisor, ou ser Presidente. No caso de Steve Jobs e da Apple estas condições parecem interligadas. Seria completamente injusto e ingénuo não reconhecer valor ao homem por detrás da marca. À pessoa por detrás do líder. Ao homem que era também Presidente. Para além disso, Jobs não era apenas ele era toda uma marca mediática, todo um novo meio de expressão. Tal como McLuhan ele controlou o meio. Ele soube que ele próprio era o meio, soube que ele próprio era a mensagem. Por isso Jobs também era conhecido como um génio de marketing. O anúncio de 1984 dirigido por Ridley Scott é considerado hoje um clássico[xviii] cuja revisitação nos cria espanto.
Pode um líder ser o produto dos seus produtos. Sim, pode. Pode um milionário ser objecto de culto pelo seu trabalho enquanto criador. Sim, pode. Ser criador significa, na visão que detemos de Jobs, não só ter um bom projecto(s), como também ter carisma pessoal, vontade de afirmação e sobretudo desenvolver um grande fascínio pelas coisas, muitas vezes, pelos detalhes que parecendo os mais insignificantes se tornam a essência do produto (e.g. a imagem, a ausência de erro, a estética apurada, o vanguardismo, o ser, de imediato, a referencia com que a concorrência se compara). O poder que daqui emerge é, assim, o triplo poder de representar, transcender e agir sobre os imaginários e a sociedade com que as suas produções e produtos atravessam a história. Produtos que vão do Macintosh ao Ipad, do universo da Pixar à publicidade, da conferência em Stanford ao impacto mediático da sua morte. Jobs e os seus produtos tornaram-se, em conjunto, objectos carismáticos, objectos de culto, que se veneram, se desejam e que, não tenhamos dúvidas, sobreviverão aos seus criadores. Um dia diremos aos nossos bisnetos: eu tive um Mac, um ipod, um iphone ou um ipad e eles saberão do que estamos a falar.
A sabedoria dos interfaces [xix] (de como tornar simples as coisas complicadas)
Em 1984, com o lançamento do computador Macintosh, a informática deu um passo de gigante. Na linha dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Xerox, onde se começava a trabalhar num interface gráfico para computador, operado a partir de um “rato” que fazia mover um cursor no ecrã, os (então) jovens Steve Jobs, Steve Wozniak e Jef Raskin[xx] decidem tornar os computadores mais próximos das pessoas. De alguma forma, em linha com o que tinham visto nos laboratórios da Xerox, inverteram o paradigma segundo o qual “as pessoas têm de saber mais sobre computadores” para o inverso, de que “os computadores têm de saber mais de pessoas”. Assim surge, a metáfora de um ecrã de computador mais próximo duma “mesa de trabalho” (conceito que prevalece até hoje) com ícones de “pastas”, “caixote do lixo”, “calculadora”, “bloco de notas”, claramente intuitivos para os utilizadores comuns que de informática pouco sabiam. Essa interpretação da função do design - “Design é uma palavra divertida. Algumas pessoas pensam que design significa aparência. Mas, claro, se se for mais fundo, é sobretudo como algo funciona” – é um dos seus grandes contributos para o impacto social da tecnologia.
Essa permanente ambição de tornar mais simples é, assim, um dos traços vitais de Steve Jobs. “O simples é mais difícil que o complexo. Tem que se trabalhar duro para conseguir fazer simples”, referia numa entrevista. Para ele, a simplicidade plena correspondia à máxima sofisticação. A sua palavra de ordem ecoava pelos laboratórios da Apple: simplificar, simplificar, simplificar. A par com uma sofisticação tecnológica crescente “atrás do pano”, Jobs sonhava tornar cada vez mais fácil e intuitivo o uso dos computadores e de outros dispositivos electrónicos.
Esta ruptura com a cultura tecnológica predominante até aí, onde o olhar dos especialistas e dos “iniciados” nas linhas de código e nos comandos MS-DOS, excluía a esmagadora maioria dos potenciais utilizadores, revoluciona a indústria da informática e abre-lhe uma via para se transformar num campo decisivo da nova cultura digital. Com esta abordagem, Jobs e as equipas da Apple, tornam os computadores mais “amigáveis” para o utilizador, tendência seguida posteriormente por todas empresas, incluindo a Microsoft, outro gigante deste mercado.
Mas esta opção marca também um outro traço característico dos múltiplos interfaces criados por Jobs: a beleza. O culto do belo, num design que além de funcional deve ser bonito, corresponde a outra ruptura da cultura informática dos programadores que não perdiam tempo com “pormenores”. Jobs percebeu que na relação objecto/pessoa a dimensão estética faz a diferença. Como ninguém, neste domínio, investiu nos detalhes, no pequeno (e grande) requinte) do objecto. Por isso, quer nos computadores, quer nos smartphones ou nos tablets, os produtos Mac são muito mais do que simples instrumentos. Carregam um estilo, interpretam valores e falam por si. “Vender sonhos, em vez de vender produtos” era uma das suas máximas, como se estivesse sempre à beira de estar a mudar o mundo. Talvez por isso, 130 milhões de pessoas em todo o mundo têm hoje um iPhone no bolso.
Esta capacidade de ser pontífice, tornando acessível o que era complexo e belo o que era horrível, faz de Steve Jobs uma fonte de inspiração para o nosso tempo. “Criatividade é ligar coisas” dizia ele. Mesmo que não o consciencializem, muitos dos que lhe prestaram homenagem em memoriais por todas as Apple Store espalhadas pelo mundo, reconheciam-lhe esse dom: fazer “pontes” bonitas e funcionais. Mas ele investia ainda num outro tipo de interface ainda mais notável. Com alguma heterodoxia, vale a pena olhar para uma outra abordagem interpretativa da importância dos interfaces. Totalmente diferente, mas potencialmente muito mais profunda: a atitude pessoal perante a adversidade.
Jobs, ao longo da sua vida, teve rotundos fracassos e viveu momentos de grande perda. Falhou na universidade, onde não teve paciência para fazer o curso. Foi despedido da própria empresa que tinha criado. Confrontou-se com um cancro fatal no auge da sua carreira. E o extraordinário nessas experiências duras foi a sua atitude. Qual interface entre si e a adversidade, Steve foi capaz de nunca deixar cair os braços e recomeçar de novo ou lutar até ao fim. Para perceber isto, vale a pena rever o seu famoso discurso em Stanford[xxi], em 2005, que não pode deixar de ecoar como um testamento de vida.
Na primeira crise, ao falhar a universidade, Jobs recorda que decidiu permanecer no campus, passando a ir só às aulas que lhe pareciam acrescentar alguma coisa, dormindo em quartos de amigos e recolhendo garrafas de Coca-Cola para ter algum dinheiro de bolso. Ao domingo andava 11 kms por um jantar decente. Ao mesmo tempo, decidiu fazer um curso de caligrafia, justificando-o por ser esta uma arte “bela, histórica e artisticamente subtil, de um modo que a ciência nunca conseguiria captar e eu achei isso fascinante”. Esse facto veio, segundo ele, a revelar-se essencial no desenho do primeiro Mac e fonte do sucesso futuro. Claro que na altura não podia imaginar o impacto que teria essa escolha. Como refere no seu discurso:
“Não se consegue “ligar os pontos” olhando para a frente. Então tem de confiar que os pontos se irão ligar no futuro. Tem de confiar em alguma coisa – no seu instinto, no destino, na vida, no karma, no que quer que seja. Esta abordagem nunca me deixou desanimar e fez toda a diferença na minha vida.”
Mas mais impressionante é a sua atitude, na segunda crise, perante o despedimento da Apple, aos 30 anos. Depois de ter criado esta empresa em 1976, de a ter tornado numa das mais bem sucedidas companhias americanas, avaliada em 2 biliões de dólares, com 4000 trabalhadores, tudo desabava. A humilhação de ser posto fora do que criara com enorme sucesso e de ter de começar do zero não podia ser mais violenta. De novo, responde com a atitude. Steve simplesmente recomeçou.
“Eu não percebi isso então, mas ter sido despedido da Apple, foi a melhor coisa que me podia ter acontecido. O peso de ser bem sucedido foi substituído pela luz de voltar a ser um iniciado, menos seguro sobre tudo. Isso permitiu-me entrar num dos períodos mais criativos da minha vida.”
Criou a Pixar (onde nasceu a saga do Toy Story, filme de animação por computador) e a NeXT. Esta mais tarde, por ironia do destino, veio a ser comprada pela Apple, entretanto caída em desgraça, o que fez Jobs regressar à sua antiga empresa e dar-lhe uma nova época de glória.
Mas, eis que chega um novo desafio: a morte anunciada. Esta é a terceira crise, a que Steve responde com a sua atitude de sempre. A descoberta de um cancro do pâncreas (um dos mais agressivos) em 2003, traz-lhe o espectro do fim da vida. Diz, a propósito:
“Lembre-se que ter a morte no horizonte é a mais importante ferramenta que encontrei para me ajudar a fazer as grandes escolhas da vida. Porque quase tudo – todas as expectativas externas, todo o orgulho, todos os medos de falhar – desaparece face à morte, deixando só o que é verdadeiramente importante. Saber que se vai morrer é a melhor forma de evitar a armadilha de pensar que se tem algo a perder. Estamos já nús. Não há razão para não seguir o seu coração.”
Este tempo da sua vida, já com a morte na agenda, trouxe ainda a Steve Jobs a oportunidade de lançar mais dois sucessos colossais: o iPhone e o iPad. Na atitude perante a morte – segundo ele, a melhor invenção da vida, por ser um agente de mudança – nunca desistiu e assim deixou mais uma herança para o mundo. Emagrecendo a olhos vistos, manteve–se ao leme da Apple até alguns meses antes da morte. E até ao fim dos seus dias, dos computadores à vida, passou o tempo a cultivar interfaces, de forma de tornar simples o que era complexo e bonito, o que era tenebroso. Até a morte.
Referências (José Costa Ramos).
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Arendt, H. (2001). A Condição Humana (R. Raposo, Trans.). Lisboa: Relógio de água Editores.
Borman, F. Apollo 8. Retrieved from http://www.youtube.com/watch?v=eqQdP5328FY
Fuller, B. (1968). God is a Verb. Whole Earth Catalogue, Fall 1968, 65. Retrieved from http://www.wholeearth.com/issue-electronic-edition.php?iss=1010
Himanen, P. (2001). The Hacker Ethic. New York: Random House.
Jobs, S. (2005). Commencement address, Stanford University. Retrieved from http://news.stanford.edu/news/2005/june15/jobs-061505.html
Moritz, M. (1984). The Little Kingdom- The private Story of Apple Computer. New York: William Morrow & Co;
Vaz Pinto, M. J. (2000). A Doutrina do Logos Na Sofística. Lisboa: Colibri.
Referências (Pedro Góis):
Becker, Howard (1982), Art worlds, Berkeley ; London, University of California Press.
Bourdieu, Pierre (1979), La distinction : critique sociale du jugement, Paris, Éditions de Minuit.
Pareto, Vilfredo (1963 (1. ed. 1923)), The mind and society. A Treatise on General Sociology, New York, Dover.
Weber, Max (1963) The Sociology of Religion, Boston: Beacon Press.
[i] Dispositivo de armazenamento e reprodução de música, de utilização intuitiva, capaz de ter num pequeno aparelho, milhares de músicas. Lançado em Outubro de 2001, com os Estados Unidos ainda sob a comoção do 11 de Setembro. Hoje tem um conjunto de modelos distintos: iPod Classic, Nano, Shufle, Touch.
[ii] Gestor e reprodutor de áudio e vídeo on-line que funciona também como loja de compra de músicas em formato digital, utilizáveis nos vários suportes (computador, iPod, iPhone, iPad). Possibilita a aquisição de músicas individuais ao invés da versão tradicional de álbum (no vinil ou nos CD). Permite organizar as suas músicas de uma forma personalizada, com listas de reprodução seleccionadas pelo utilizador. Criado em 2003.
[iii] Telefone inteligente (smartphone) que integra as funções de telemóvel, máquina fotográfica e de captação de vídeo, de aparelho de jogos, de acesso à internet e de iPod, entre outras. Com interface muito intuitivo, de ecrã de toque (touch screen) permite operações simples. Apresentado por Jobs em Janeiro de 2007.
[iv] Dispositivo que faz a ponte entre um computador, um iPhone e um iPod. Na linha dos chamados tablets, tem a dimensão de uma folha A4, um ecrã táctil de excelente qualidade e um conjunto muito variado de aplicações que lhe permitem, com o apoio do acesso à internet, realizar quase todas as operações de um computador. Facilmente transportável (próximo de um caderno A4). Apresentado em Janeiro de 2010.
[v] Da autoria de José da Costa Ramos
[vi] Catálogo de Toda a Terra
[vii] Acesso a ferramentas
[viii] Acrónimo de National Aeronautics and Space Administration a agência governamental dos Estados Unidos da América responsável pelo programa espacial.
[ix] O Sputnik 1, lançado pela União Soviética em 4 de Outubro de 1957, é o primeiro satélite artificial a ser colocado na órbita da Terra.
[x] A Apolo 8, lançada pelo Estados Unidos da América, nas vésperas de Natal de 1968 é a primeira nave tripulada a fazer a órbita da lua e a transmitir directamente para todo o mundo imagens da superfície lunar e da terra. Em 20 de Julho de 1969 Neil Alden Armstrong, da Nave Apolo 11, seria o primeiro ser humano a pôr o pé na Lua.
[xi] Filme disponível em http://www.youtube.com/watch?v=eqQdP5328FY
[xii] Vidé “ a sabedoria dos interfaces”
[xiii] Filme disponível em http://www.youtube.com/watch?v=HhsWzJo2sN4
[xiv] Filme disponível em http://www.youtube.com/watch?v=GEPhLqwKo6g
[xv] No mito narrado por Prótagoras nos diálogos platónicos Prometeu rouba a Atena e a Hefesto a sabedoria técnica e o fogo para oferecer aos homens. A este propósito vidé (Vaz Pinto, 2000, p. 103)
[xvi] No original: “Stay Hungry, Stay Foolish” (Jobs, 2005)
[xvii] Da autoria de Pedro Góis
[xviii] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=OYecfV3ubP8 consultado a 09.11.2011.
[xix] Da autoria de Rui Marques.
[xx] Especificamente para o computador Macintosh
[xxi] Disponível em vídeo no You Tube. Com mais de 13 milhões de visualizações. Texto integral disponível em http://news.stanford.edu/news/2005/june15/jobs-061505.html
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