Rui Marques
Um País em construção
Timor-Leste, dez anos depois

Timor-Leste comemorou recentemente o décimo aniversário da sua independência. Foi uma década difícil que os timorenses souberam ultrapassar com inteligência e determinação. Apesar de todas as dificuldades, a esperança não perdeu o lugar central. Revisitar esse trajeto constitui o objetivo deste artigo que, sendo parcial e subjetivo, mostra um olhar sobre Timor na primeira pessoa.
20 de Maio de 2002, Tacitolu, nos arredores de Díli. Culminava ali a luta de 27 anos, em busca da autodeterminação e da independência, numa luta heroica contra um invasor impiedoso.
Nascia então o primeiro país do século XXI. A cerimónia transbordava em dignidade e em alegria incontida. Passo a passo, com expressões de um enorme simbolismo, iam passando os quadros de uma memória de sacrifício e coragem. A culminar, um gesto inesperado de Xanana Gusmão. Antes do hastear da bandeira, o líder histórico timorense entrava no palco das cerimónias, de mão dada com Megawati Sukarnoputri, presidente da Indonésia. Quando aquele par improvável entrou, a multidão explodiu num aplauso crescente, ainda que com uns breves segundos de pausa no arranque, criando um suspense momentâneo. A surpresa tinha deixado a toda a gente boquiaberta. Se a noite da independência era um “infinitamente improvável”, que dizer da cerimónia acontecer com a presença da representante máxima do inimigo de ontem? E do aplauso de tantos que haviam sofrido na pele a passagem dos indonésios?
Trago este momento à memória porque nos ajuda a perceber que Timor está, muitas vezes, para além do que podemos alcançar. Surpreende-nos. A lógica de pensar e agir timorense é muito diferente e deixa-nos frequentemente baralhados, incapazes de a descodificar com a nossa estrutura cartesiana ocidental. Mais ainda: Timor é, normalmente, uma lição. Este gesto de enorme visão estratégica dos timorenses, ao enterrar ali parte do passado, em nome da construção de um futuro de paz e cooperação com o vizinho gigante, mostra muito sobre a forma como os timorenses sabem conduzir o seu destino.
Dez anos depois, estive no mesmo local. Simbolicamente, à mesma hora, tomava posse o 3º presidente eleito desta nova era, Taur Matan Ruak. A transição de poder entre presidentes, depois de umas eleições sem mácula, mostrava o melhor a que uma democracia pode aspirar.
O presidente cessante, uma das figuras mais importantes da história recente de Timor, Ramos Horta, havia perdido as eleições a que se recandidatava depois de um mandato cumprido. De uma forma inesperada para muitos, os votos ditaram o 3º lugar para o Prémio Nobel da Paz e a vitória de uma outra personalidade notável de Timor. Horta, evidenciando a humildade dos grandes, cedeu o lugar a Taur Matan Rauk, selando com um forte abraço a transição pacífica do mais alto magistrado da nação.
Entre estes dois momentos extraordinários, foi tempo de luz e de sombras, onde se esteve perto do precipício, mas onde a construção do primeiro país independente do século XXI deu passos enormes.
O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2011 (RDH) em Timor-Leste, da autoria das Nações Unidas, sublinha como conquistas neste período, a reconstrução da nação, a realização de eleições livres e justas, uma nova Constituição aprovada, instituições consolidadas, bem como uma sábia gestão dos recursos petrolíferos, visto como “boa prática exemplar ao nível internacional”. Do lado do passivo, o RDH sublinha o elevado nível de desemprego juvenil, a queda do rendimento per capita das famílias e a pobreza crescente das zonas rurais. É através de alguns destes marcos que percorremos esta revisão de dez anos de independência.
O ponto de partida - a transição pós-referendo
É impossível falar desta década de independência sem ter em conta o ponto de onde se partiu.
Depois de três décadas de ocupação indonésia, iniciada em Dezembro de 1975, os timorenses com a sua luta determinada e corajosa conseguiram chegar ao referendo para a sua autodeterminação. Nesse caminho, contaram com o apoio crescente de muitos países do mundo, com Portugal desde a primeira hora, apesar de alguns momentos de hesitação ou distração. Finalmente, em Agosto de 1999, o povo timorense falou através das urnas. 78,5% dos participantes neste referendo, realizado sob a égide das Nações Unidas, escolhiam a independência. As consequências não se fizeram esperar. Um vendaval de fogo e violência, animado pelo ocupante humilhado e executado por milícias timorenses pró-Indonésia, devastava Timor. O país ficava em cinzas. Nenhum edifício público ficava de pé e muitas casas particulares sofriam o mesmo destino. Ao mesmo tempo, milhares de timorenses eram obrigados pelas milícias e militares indonésios a deslocarem-se para Timor Ocidental, território
indonésio, aí ficando, para todos os efeitos, como verdadeiros reféns. Conquistava-se a independência a um preço elevadíssimo, nomeadamente, o de ter herdado um país em cinzas, sem infraestruturas, nem Estado, nem leis.
O grande desafio do período de 1999/2002 era recomeçar a partir da terra queimada.
Reconstruir o essencial e colocar o Estado a funcionar. Com a liderança das Nações Unidas, através da UNTAET, era tempo de lançar mãos à obra. Apesar das enormes dificuldades, era também um tempo de uma esperança festiva. Nesse período, o nome de Sergio Vieira de Melloi, diplomata brasileiro que comandou a UNTAET, constitui um marco incontornável para memória futura. Do lado timorense, os grandes vultos do tempo da resistência, em particular Xanana Gusmão, Ramos Horta, Mari Alkatiri, Taur Matan Ruak desempenhavam os principais papéis.
Na agenda político-institucional dessa época, podemos identificar como temas essenciais:
1) Que nova Constituição para Timor-Leste? Que modelo institucional de Estado?
2) Que língua oficial adotar?
3) Como garantir a segurança e a reconciliação pós-conflito de 1999?
4) Como renegociar o acesso aos recursos naturais e o que fazer com eles?
5) Como conseguir um modelo de desenvolvimento económico que permitisse sair da
pobreza extrema?
6) Que prioridades na reconstrução do País?
Opções estruturantes da Constituição: línguas oficiais e recursos naturais
Uma das tarefas essenciais desse período de transição, foi a definição do texto constitucional do novo Estado timorense, a partir de uma Assembleia constituinte. Com uma grande influência da “escola” portuguesa e com um papel relevante do Prof. Pedro Bacelar de Vasconcelos, resultou num modelo bastante próximo do de Portugal. Não é aqui o espaço próprio para uma análise aprofundada deste processo, mas vale a pena sublinhar que dela decorrem, para além da definição das grandes linhas do Estado de Direito democrático e liberal, ao estilo ocidental, algumas opções fundamentais, como:
1) Uma opção pelo Português e pelo Tétum como línguas oficiais
2) A constituição de reservas financeiras obrigatórias que capitalizasse as receitas do
petróleo e gás natural (veio a dar origem ao Fundo Petrolífero), o que colocava fortes
restrições ao seu uso para fins de financiamento do Orçamento de Estado corrente.
3) O não reconhecimento de qualquer tratado anterior à Constituição, com impacto óbvio em relação ao Timor Gap e aos acordos firmados entre a Indonésia e a Austrália.
Destes tópicos vale a pena aprofundar, desde logo, a opção linguística. A questão da língua oficial, quer no período de transição, quer nesta década de independência, foi um tema de polémica persistente. As quatro línguas que inicialmente integravam a lista de escolhas possíveis eram o português, o tétum, o bahasa indonésio e o inglês. À partida, a língua indonésia, apesar de constituir um recurso comum a toda a população, depois de três décadas de introdução coerciva no território, seria impossível vir a ser adotada, desde logo pela dimensão simbólica de ter constituído uma das bandeiras do invasor. O tétum, sendo uma língua timorense, teria sempre que ser escolhida, desde logo por questões simbólicas de orgulho e identidade nacional, mas a sua (i)maturidade não permitia que se assumisse como a língua única. Restava como opção a coexistência do tétum com uma outra língua oficial: o português e o inglês.
Desde o primeiro dia em que o tema se discutiu em Timor, toda a estrutura internacional das Nações Unidas, com forte preponderância anglo-saxónica, tudo fez para que o inglês fosse a língua oficial. E, à primeira vista, poderia fazer sentido. Sendo hoje uma língua veicular universal e sendo falada na região, nomeadamente pela Austrália, Nova Zelândia ou Singapura poderia constituir uma ponte com essa realidade e uma ferramenta para as relações internacionais. Mas, curiosamente, a esmagadora maioria dos timorenses sempre teve uma posição clara de rejeição desta opção, para grande perplexidade dos “internacionais”. Não é necessária uma grande investigação para perceber o porquê dessa relutância. Escolher o inglês como língua oficial seria, na opinião dos timorenses, uma opção perigosa pois colocaria o seu jovem País numa esfera excessivamente próxima da órbita australiana, com os riscos inerentes de caminhar para um estatuto de “protetorado”, o que não seria aliás original naquela região do Mundo. Por isso, a opção pelo português constitui, antes de tudo, uma escolha política de diferenciação e de identidade própria que, a par com o tétum, torna Timor-Leste inconfundível com os seus vizinhos gigantes. O bahasa indonésio e o inglês são reconhecidos como línguas de trabalho, mas fica claro na Constituição timorense que as línguas nacionais seriam o português e o tétum.
Essa escolha teve o seu preço. A língua portuguesa, em 2002, depois de quase 30 anos de proibição, era falada por uma minoria da população, particularmente os mais velhos e os sectores ligados à Igreja e à Resistência. Havia que a reintroduzir quase do zero. Era - e é – um esforço para décadas, contando com um permanente efeito de desgaste e resistência das forças que sempre se opuseram a essa opção. Optou-se por a reintroduzir no sistema educativo a partir do 1º ano do ensino básico e progressivamente ir alargando aos restantes níveis de ensino. Dez anos depois, apesar de muitas vozes críticas, é impressionante o progresso registado. Serão necessários, pelo menos, mais vinte anos para que o português se consolide e, sobretudo, é essencial que os países lusófonos não desistam do seu esforço de apoio a Timor nesta caminhada. Não é inocentemente que se refere aqui o contexto lusófono.
Apesar do papel determinante de Portugal neste processo de apoio à reintrodução da língua (investimos numa década 50 milhões de euros nesse programa), o sucesso será tanto maior quanto mais envolvida estiver a CPLP. Essa dinâmica, a que Timor dá muita importância – presidirá à CPLP em 2014 – afasta definitivamente este tema da discussão sobre “neocolonialismo”, arma de arremesso típica dos que defendiam outra opção linguística.
Importa também reter a firmeza e determinação das lideranças políticas timorenses quanto a esta matéria. Desde 2002 até hoje não houve fraturas assinaláveis quanto ao tema. Mais recentemente, os primeiros discursos do novo Presidente eleito, Taur Matan Ruak, são, a este propósito, muito expressivos. Na Escola Portuguesa de Díli, em 21 de Maio de 2012, em receção oferecida pelo presidente português, Cavaco Silva, no quadro da sua visita oficial, Matan Ruak afirmava: “Para que não restem dúvidas. Nós fizemos uma opção política, estratégica e identitária. O português está para ficar.” A opção pelo português, segundo o Presidente timorense, visou consolidar a “identidade nacional, que entre outros, tem por pilares o catolicismo e a língua portuguesa”.
Uma outra questão fundamental para a construção de Timor-Leste passava pelo acesso aos recursos naturais. No tempo da ocupação indonésia ouvia-se recorrentemente que Timor não poderia ser independente pois era muito pobre e, por isso, não era viável. Com a descoberta de significativas reservas de gás natural e de petróleo no mar de Timor, no lado sul da ilha, o cenário mudou e esse argumento evaporou-se. Ainda no tempo da ocupação pela Indonésia, em 1989, este país negociou com a Austrália a definição de uma fronteira marítima entre Timor e a Austrália que era francamente favorável ao vizinho do sul. Desse acordo resultava que grandes recursos petrolíferos passavam para a esfera australiana. Curiosamente, anos
antes, a Austrália havia sido o único país da esfera ocidental a reconhecer de facto e de direito a integração de Timor-Leste na Indonésia. Tudo tem o seu preço. Portugal como potência administrante nunca reconheceu este acordo e intentou uma ação contra a Austrália, logo em 1991, mas a situação permaneceu bloqueada.
Com a independência de Timor-Leste, naturalmente este tema veio de novo para agenda, argumentando o novo país que, na definição da sua fronteira marítima, deveria vigorar o princípio universal das 200 milhas. A Austrália não aceitou. Sem o pudor que o seu estatuto de Golias face a um pequeno território deveria merecer, perante um povo que precisava desesperadamente daqueles recursos (e que eram seus!) para se poder desenvolver e escapar à pobreza endémica, os australianos foram colocando todas as pedras possíveis na engrenagem da reposição da justiça. Essa polémica prossegue, hoje em dia, com um novo e relevante capítulo. Uma das reservas mais importantes de gás natural no Mar de Timor chama-se Greater Sunriseii. Tem um potencial imenso e há que decidir como se fará o processamento (liquefação) desse gás: se através de um pipeline para a Austrália, ou para Timor ou numa plataforma off-shore. As autoridades timorenses têm sido irredutíveis na defesa da vinda do pipeline para Timor porque representaria mais um salto muito importante, com um impacto de desenvolvimento na região mais pobre de Timor (costa sul). De novo e como sempre, a Austrália não facilita.
De qualquer forma, ainda que com uma injustiça evidente, havia recursos financeiros muito importantes resultantes da exploração petrolífera. As regras de utilização desses recursos - desde o início do período de transição com a UNTAET e depois com a aprovação da Constituição de Timor-Leste - foram um outro tema central e constituíram talvez das maiores lições que Timor deu ao mundo. Depois de uma discussão alargada na sociedade timorense sobre o que fazer a estas receitas, nasce a opção estruturante da constituição de um Fundo Petrolífero, cuja lei de enquadramento viria a ser aprovada em 2005iii. Segundo um modelo próximo da Noruega, as receitas obtidas deveriam constituir reservas para as gerações futuras, não sendo gastas nas despesas correntes do Orçamento de Estado (com exceção de uma pequena percentagem). Esta decisão constituiu uma das mais corajosas e visionárias opções dos timorenses nesta década. Aceitar continuar a viver com uma grande escassez de recursos para a despesa pública corrente e capitalizar para o futuro não é, como sabemos, uma decisão
política fácil num sistema democrático com uma luta eleitoral cíclica. A pressão para gastar muito em troca de votos que assegurem o poder, é a tentação sempre presente para o governo vigente. Basta ver, por exemplo, o modelo de Chávez, na Venezuela. Timor, em grande medida, resistiu a essa armadilha. Em consequência, esse Fundo acumulou, até Abril de 2012, 10 mil milhões de dólares, sendo esperado que continue a capitalizar à média de cerca de 9 milhões de dólares por diaiv até, pelo menos, 2030.
Estes recursos estão aplicados, maioritariamente, em títulos do Tesouro norte-americano, sendo por isso Timor Leste um dos “financiadores” da dívida norte-americana. As voltas que o mundo dá: depois de terem sido os Estados Unidos da América a autorizar a invasão de Timor em 1975; depois de terem sido os mesmos Estados Unidos a pressionar para a realização do referendo e, após a violência que se seguiu, terem sido quem viabilizou a intervenção de uma força multinacional que forçou a saída da Indonésia, acaba beneficiário do investimento do Fundo Petrolífero timorense.
O outro pilar: a Igreja Católica
É impossível olhar para Timor Leste, quer no período da ocupação, quer nesta década de independência, sem nos determos no papel da Igreja Católica. Não cabe neste texto analisar o papel da Igreja Católica antes da independência, mas a citação do preâmbulo da Constituição timorense – ainda mais significativa porque aprovada por uma Assembleia constituinte com um partido maioritário de base marxista – evidencia a importância que se lhe reconhece:
“Na sua vertente cultural e humana, a Igreja Católica em Timor-Leste sempre soube assumir com dignidade o sofrimento de todo o Povo, colocando-se ao seu lado na defesa dos seus mais
elementares direitos.”
Mais adiante, no nº2, do art.º. 11º, refere-se novamente que: “O Estado reconhece e valoriza a participação da Igreja Católica no processo de libertação nacional de Timor-Leste.” Sendo que a História não pode ser “imaginada” através de cenários alternativos hipotéticos, é consensual que sem o contributo da Igreja Católica, Timor-Leste provavelmente não teria tido sucesso no seu processo de libertação e autodeterminação. É bom lembrar, por exemplo, a importância do pedido formal em 1989 ao Secretário-geral das Nações Unidas, de um referendo para a autodeterminação de Timor-Leste da autoria de D. Carlos Ximenes Belo, ou da visita de João Paulo II a Díli, nesse mesmo ano, momento hoje considerado marco relevante no processo de libertação de Timor. Mas, sobretudo, a relevância do papel das estruturas da Igreja ao nível das bases e do trabalho anónimo foi essencial para a proteção da identidade timorense, bem como da defesa dos direitos humanos.
Nesse contexto, para além do papel decisivo dos bispos, padres, religioso/as e leigos
(principalmente a figura dos “catequistas”) timorenses, há que prestar homenagem – os timorenses fazem-no recorrentemente – aos jesuítas portugueses que nunca abandonaram o território durante toda a ocupação: Revs. Pe. João Felgueiras, Pe. José Alves Martins e Irmão Daniel Ornelas. A sua história missionária heroica é indissociável da libertação de Timor.
Com o fim da ocupação indonésia e a primeira década da independência, um novo desafio se colocava à Igreja Católica. Se é verdade que o tempo da ocupação indonésia era sinónimo de um sacrifício e sofrimento indizíveis, era também um tempo em que os timorenses encontravam na sua Igreja o cais de abrigo, a proteção e o ânimo que precisavam. Havia um inimigo externo que a todos unia e que fazia confluir na Igreja (e na resistência, principalmente na Frente clandestina) as energias de todos. Timor-Leste tornava-se um dos territórios da Ásia com maior percentagem de católicos.
Depois da independência, já sem inimigo externo, a Igreja teve que reconfigurar o seu papel na sociedade timorense. Isso implicou, de alguma forma, uma perda de poder e uma recentragem progressiva na sua missão espiritual. Não foi fácil, havendo momentos em que foi evidente a tentação para que Igreja assumisse um papel que extravasava claramente as fronteiras da sua missão. Felizmente foram ultrapassados esses dias.
Hoje, a Igreja timorense continua a ser essencial na vida daquela comunidade, com um papel nuclear nas áreas da educação, da saúde e do combate à pobreza, liderando muitos projetos de intervenção social por todo o território. Nesta década, o histórico bispo Ximenes Belo deu lugar a um novo Bispo de Díli, D. Alberto Ricardo da Silva, figura igualmente respeitada e que havia sido diretor do Seminário. Timor tem atualmente três dioceses (Díli, Baucau e Maliana) e, desde 2012, conta com a sua Conferência Episcopal, presidida por D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau, figura carismática que imprimiu à sua diocese uma dinâmica impressionante.
Sarar as feridas do passado: acolhimento, verdade e reconciliação
Uma das maiores feridas na sociedade timorense que havia que enfrentar no pós-independência era o capital de ressentimento acumulado, quer contra a Indonésia, quer
(também) entre timorenses.
No eixo da reparação das violações dos direitos humanos em Timor perpetrados pela
Indonésia entre 1975 e 1999, muitos “internacionais” pressionaram fortemente para o
julgamento desses abusos num Tribunal Penal Internacional (TPI). Os líderes timorenses sempre excluíram tal opção. Ainda em 2010, o Presidente da República Ramos Horta reafirmava a sua opção em comunicado oficial onde afirmava: “Continuo a descrer firmemente que as causas da paz e da democracia, e os interesses das vítimas do meu país sejam melhor servidos com um Tribunal Internacional". O processo de reconciliação com a Indonésia não passaria por aí.
Na dimensão interna, desde 1975, com as sequelas da guerra civil entre a UDT e a FRETILIN e os mortos e desaparecidos provocados por ambas as partes, até às milícias de 1999, passando por “colaboracionistas” do tempo indonésio, muitas contas estavam por acertar. A independência poderia abrir espaço para uma espiral de violência e de vingança que não teria fim. Basta lembrar que em 1999 a esmagadora maioria das casas timorenses foi incendiada por militares indonésios e milícias timorenses e muitos perderam a vida às mãos dos seus compatriotas.
Neste domínio, Timor deu-nos outra lição. A opção de fundo pela constituição de Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR)v, à semelhança do que havia acontecido na Africa do Sul pós-apartheid, revelou-se uma escolha muito corajosa, também mal compreendida por muitos. Criada em 2001, assumiu a sua missão como estrutura independente, com sete comissários timorenses e realizou o seu trabalho até 2005, publicando no final o relatório “Chega!” com mais de duas mil páginas.
Como referia o seu Presidente, Aniceto Guterres, na entrega do Relatório, Timor-Leste
escolheu um caminho difícil:
“Sendo uma nação com poucos recursos e que enfrenta desafios excecionais, Timor-Leste podia ter decidido nada fazer ou optar por perdoar e esquecer. Em vez disso, a nossa nação decidiu seguir o caminho da responsabilização pelas violações passadas de direitos humanos, e decidiu fazê-lo de forma exaustiva, tanto para os crimes mais graves como para os menos graves, ao contrário de alguns países que estão a emergir de conflitos e que optaram por se concentrar apenas numa ou duas questões. E, simultaneamente, quis mostrar os danos imensos que resultam para os indivíduos e para as comunidades quando o poder é usado com impunidade.“
Um dos contributos mais interessantes nesse processo é a definição do que se entende por reconciliação:
“A reconciliação é um processo que reconhece os erros passados e encara o arrependimento e o perdão como produtos de um caminho inerente ao processo de alcançar a justiça; também é um processo que deve envolver o Povo de Timor-Leste de
modo a que o ciclo de acusação, negação e contra-acusação possa ser quebrado. Este
processo não deve ser visto apenas como uma resolução de conflitos ou uma mera
ferramenta política visando a pacificação e a reinserção de pessoas ou grupos no contexto da sua aceitação da independência e soberania de Timor-Leste, mas, acima de tudo, deve ser visto como um processo do qual deve resultar a verdade.”
A CAVR não se constituiu como Tribunal, nem julgou casos individuais, mas deu um contributo fundamental para avaliar o que se tinha passado em termos de violações de direitos humanos em Timor, entre 1975 e 1999. Como é referido no Relatório final, o mandato da Comissão envolvia o “o apuramento de fatores como o contexto, as causas, os antecedentes, os motivos e as perspetivas que levaram à violência, determinando se faziam ou não parte de um padrão sistemático de abuso, a identidade das pessoas, autoridades, instituições e organizações envolvidas nas violações, e se as violações resultaram de um planeamento, de uma política ou de autorização intencionais da parte do Estado, de grupos políticos, de milícias, de movimentos de libertação ou de outros grupos de pessoas.”
No final deste processo, ouviram-se algumas críticas, nomeadamente na incapacidade de acolher as recomendações da CAVR, nomeadamente reparando os danos cometidos sobre as vítimas identificadas de abusos de direitos humanos, durante esse período. Sendo provável que exista alguma razão para esta crítica, não deixa de ser um marco notável nesta primeira década de independência.
A crise de 2006/8
Timor viveu neste período de independência igualmente alguns momentos dramáticos, no qual tudo esteve em risco. Em Fevereiro de 2006, um grupo de cerca de 600 militares timorenses abandonava as Forças Armadas, em protesto contra as alegadas injustiças, no tratamento desigual dentro da instituição militar entre oriundos da parte ocidental e da parte oriental de Timor-Leste. Entrava no léxico político-militar uma nova divisão que até aí nunca se manifestara: os “Lorosae” (timorenses dos distritos de Leste) contra os “Loromonu” (timorenses dos distritos de Oeste). Estava lançada a faísca para uma potencial guerra civil. A liderança das Forças Armadas, em fidelidade aos seus princípios estruturantes da hierarquia e da disciplina, não aceitou este tipo de manifestação e exonerou estes militares, que passaram a constituir, de facto, um grupo de “desertores”, contestatários e rebeldes. A sua ação foi profundamente desestabilizadora e, em grande medida, foi servindo voluntária e involuntariamente obscuros interesses externos e internos, levando à queda, em Junho, do primeiro ministro do Iº Governo constitucional, Mari Alkatiri, da FRETILIN, que havia ganho as eleições legislativas. Mas a principal consequência que decorre dessa crise é o pedido de regresso das forças militares internacionais que haviam saído em 2004, depois de cumprida a missão de segurança pós-referendo de 1999. Timor perdia de novo a soberania simbólica, no domínio da segurança.
Desta crise resultou uma enorme quebra económica, com a contração do 5,8 % do PIB não-petrolífero, recuando o rendimento per capita cerca de 20%. De igual forma, com um enorme impacto em Díli, a crise fez surgir cerca de 150.000 deslocados internos que acampavam em vários pontos da cidade com medo de regressar às suas aldeias no interiorvi. Foram tempos terríveis, onde se podia ter deitado tudo a perder.
Na sequência desse momento crítico, José Ramos Horta, até então Ministro dos Negócios Estrangeiros, assume transitoriamente a liderança do Governo procurando pacificar um país em pré-guerra civil. Alguns meses mais tarde, em 2007, Horta candidata-se com sucesso a Presidente da República, substituindo o histórico Xanana Gusmão na mais alta magistratura do Estado.
Observadores privilegiados apontam a coincidência ou correlação – as opiniões dividem-se – da crise de 2006/8 com a questão do Timor Gap e das receitas do petróleo e gás natural. Em Janeiro de 2006, depois de anos de negociações, Timor Leste e a Austrália chegavam a um novo acordo quanto à repartição das receitas da exploração do gás natural off-shore, no mar de Timor, mas mantinha-se em aberto a disputa quanto à delimitação da fronteira marítima entre estes dois países. Este tema, como já se sinalizou, constitui um ponto fulcral para perceber – quase tudo - na evolução na última década da situação em Timor-Leste e provavelmente irá condicionar ainda mais as próximas fases. Quando, depois de anos de negociações e pressões, Timor conseguia alcançar uma pequena vitória, obrigando a Austrália a repartir de outra forma as receitas do gás natural timorense, eis que se desencadeia um ciclo de desestabilização, para o qual os “peticionários” parecem ter sido instrumento útil. Em
consequência do caos e do confronto nas ruas de Díli e do consequente pedido para o regresso das forças militares internacionais, essencialmente australianas, Timor-Leste perdia parte da sua soberania e dava aparente razão aos que começavam a falar de um “Estado falhado”.
Segundo os adeptos de uma visão mais “conspirativa”, nada mais conveniente do que um estatuto de “protetorado” australiano de facto e consequente fragilidade em qualquer negociação quanto à fronteira marítima. Aliás a declaração do primeiro-ministro australiano, John Howard, à rádio australiana ABC, em Maio de 2006 encorajava essa visão:
"Há um problema significativo de governação em Timor-Leste. Não vale a pena andarmos a enganar-nos. O país não tem sido bem governado e espero que a experiência, para os que estão em cargos eleitos, de terem a necessidade de pedir ajuda do exterior, induza o comportamento apropriado no país", concluiu o governante australiano. (Público, 27.5.2006)
Claro que os timorenses não estarão isentos de erros neste processo mas, anos depois, deram provas que tinham aprendido a lição e não mais voltariam a cair na armadilha que sempre os seus adversários procuraram explorar: a divisão interna. À primeira chuva de pedras, depois das eleições de 2012, contestando os resultados da vitória do CNRT, devem ter vindo à memória as aprendizagens passadas.
As eleições de 2007 e a ascensão do CNRT
O ciclo eleitoral de 2007 não trouxe só a eleição de Ramos Horta para Presidente da República. O presidente cessante, Xanana Gusmão, até então líder suprapartidário, decide fundar o seu próprio partido, o CNRT (Conselho Nacional para a Reconstrução Timorense) e entrar na luta política, afirmando-se como alternativa à FRETILIN, que terminava o mandato anterior fortemente condicionada pela crise dos peticionários e tudo o que se lhe seguiu. Os resultados das eleições ditam uma configuração estranha. A FRETILIN vence de novo, mas sem maioria absoluta. Os restantes partidos com assento parlamentar, liderados pelo CNRT, formam uma coligação pós-eleitoral e garantem uma maioria no parlamento. O novo Presidente aceita essa solução e dá-se um caso relativamente raro em democracia de um partido vencedor de eleições ser…oposição. Alvo de críticas de muitos sectores, algumas delas justas, quanto ao desempenho no seu período de governação, é justo reconhecer que a FRETILIN dava mostras de um sentido de responsabilidade notável ao aceitar essa solução, abdicando de uma contestação prolongada e violenta, que visasse desgastar o novo governo. Ficou a seu crédito esse gesto.
Em Fevereiro de 2008, a crise dos “peticionários” teve o ocaso, de uma forma trágica. Ramos Horta quase sucumbia a um violento atentado que o deixou entre a vida e a morte. À porta de sua casa, num episódio ainda hoje nubloso, era atingindo a tiro por um ataque deste grupo rebelde, liderados pelo major Alfredo Reinado. Do recontro, onde os principais atacantes pereceram, resultou um Presidente da República moribundo, à espera do socorro que tardava.
Ainda assim, a posterior evacuação para a Austrália viabilizou o milagre da sua sobrevivência.
Com esse episódio, que coexistiu com uma tentativa de atentado ao Primeiro-ministro Xanana Gusmão que não teve êxito, executado por outra unidade de peticionários, atingia o dramatismo máximo que corresponderia também ao estiolar desse processo, para o qual a morte de Reinado, terá contribuído.
A segunda legislatura, com o Governo Xanana Gusmão, após esses incidentes de 2008, correspondeu a um período de estabilidade e crescimento de Timor. Com recursos crescentes provenientes das receitas do gás natural, foi possível manter um crescimento sustentado que já vinha sendo verificado, passando o seu PIB per capita de 1600 para 4100 USD, entre 2004 e 2010. No entanto, só 875 USD decorrem da atividade económica “não-petrolífera”. Isso constitui um grande desafio para o futuro de Timor, pois é vital aproveitar os recursos disponíveis para desenvolver a economia e torná-la forte, independentemente das receitas do petróleo que, por natureza, serão finitas.
Os três principais pontos negativos da situação atual, segundo a avaliação de competitividade do World Economic Forumvii, e que constituem entraves ao investimento privado são: as fracas infraestruturas, a excessiva burocracia e a corrupção. Timor-Leste tem ainda um longo caminho para progredir nestes domínios embora seja muito encorajador que, ao contrário do que acontece em muitos países do mundo, perante uma acusação recente de corrupção, uma Ministra timorense do último governo, tenha sido acusada, julgada e condenada a 5 anos de prisão.
Para fazer face a todos estes desafios, o último Governo apresentou um Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030 que constitui uma importante ferramenta de referência sobre os caminhos do futuro próximo e que em grande medida foram validados pelo sufrágio popular nestas últimas eleições legislativas de 2012. Desta vez os votos ditaram a vitória do CNRT, ainda que sem maioria absoluta. Uma coligação, a que se juntou ao partido vencedor, o Partido Democrático e a FRETI-Mudança, de Fernando Lasama Araújo e José Luís Guterres, respetivamente, viabilizou uma maioria parlamentar para um novo mandato que se deseja de grande desenvolvimento para Timor-Leste. Esperando que seja motivo de bom augúrio, o primeiro facto relevante deste período, acontece com a visita a Díli de Ban Kin-Moon, Secretário-Geral das Nações Unidas, para anunciar a saída definitiva das forças militares internacionais, sinalizando a plena normalidade da soberania timorense.
Timor, terra de esperança
Dez anos depois, Timor-Leste é uma terra de esperança. Esperança que não é certeza, mas tão só sonho que se pode vir a tornar realidade, se as opções acertadas de desenvolvimento se concretizarem, desde logo com:
a) Um modelo de desenvolvimento humano que tire partido de uma demografia muito
marcada por forte presença de jovens e crianças (mais de 50% da população tem
menos de 21 anos) correspondendo com um forte investimento ao nível da educação
e formação profissional, saúde e habitação.
b) Um modelo de crescimento económico que torne Timor independente do petróleo, dando atenção a sectores como a agricultura, a pecuária, a floresta, as pescas e o turismo, para que as áreas rurais se desenvolvam, reduzindo os desequilíbrios entre mundo rural e urbano.
c) Um modelo de desenvolvimento de infraestruturas de transporte e comunicação, de
energia, saneamento básico e água, sobretudo fora de Díli e no qual a aposta num
grande projecto de desenvolvimento da costa sul será muito importante, caso venha a
vencer o diferendo para Austrália, vindo para Timor o pipeline para o tratamento do
gás natural do Greater Sunrire.
d) Um modelo social de combate sustentado à pobreza, que ainda marca profundamente o território.
e) Um modelo de segurança e ordem pública, que garanta paz e baixa conflitualidade em Timor, não permitindo que se repitam crises com a de 2006 e outros episódios soltos que se registaram.
Como mostraram ao longo da sua história recente, os timorenses têm tudo o que precisam para vencer até as batalhas mais difíceis. Desta vez, estou certo que também não desperdiçarão esta oportunidade única que têm nas suas mãos, de construírem aquilo por que tantos deram a vida: um país desenvolvido, pacífico e com futuro.
Notas
i Sérgio Vieira de Mello veio a morrer alguns anos mais tarde num atentado da AlQaeda, no Iraque.
ii Para mais informação sugere-se a consulta do site da ONG timorense La´o Hamutuk
http://www.laohamutuk.org/Oil/Sunrise/10Sunrise.htm
iii Para mais informação consultar a página do Fundo Petrolifero no Ministério das Finanças de Timor-Leste em
http://www.mof.gov.tl/budget-spending/petroleum-fund/?lang=pt
iv No primeiro trimestre de 2012 as entradas líquidas foram de 843 milhões de USD, segundo relatório trimestral do Fundo Petrolífero.
v A partir de informação disponibilizada no Resumo Executivo do Relatório “Chega!” - Relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) de Timor-Leste.
vi Timor Leste Human Development Report 2011, UNDP, pag. 10
vii World Economic Forum. 2011. Global Competitiveness Report 2011-2012.