Meditações feitas pela prisão de Pádua
Uma vez mais na Praça de São Pedro, deserta mas tão cheia, o Papa Franscisco propôs-nos ontem uma outra Via-Sacra. Para quem não teve a ocasião de acompanhar – ou para quem teve e quer revistar a força dos testemunhos que acompanharam Jesus na sua via dolorosa – aqui deixo em especial as 14 meditações feitas a partir do Estabelecimento Prisional de Pádua.
(do site do Vaticano)
Introdução
As meditações da Via-Sacra deste ano são propostas pela capelania do Estabelecimento Prisional «Due Palazzi» de Pádua. Aceitando o convite do Papa Francisco, catorze pessoas meditaram sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, tornando-a atual nas suas vidas. Entre elas, há cinco pessoas presas, uma família vítima dum crime de homicídio, a filha dum homem condenado à pena de prisão perpétua, uma educadora de prisão, um juiz supervisor, a mãe duma pessoa presa, uma catequista, um frade voluntário, um agente da Polícia Penitenciária e um padre acusado e mais tarde absolvido definitivamente pela justiça depois de oito anos de processo ordinário.
Acompanhar Cristo pelo Caminho da Cruz, com a voz rouca das pessoas que povoam o mundo das prisões, é uma oportunidade de assistir ao duelo prodigioso entre a Vida e a Morte, descobrindo como os fios do bem, inevitavelmente, se entrelaçam com os fios do mal. Contemplar o Calvário por trás das grades é acreditar que uma vida inteira se pode decidir em poucos instantes, como aconteceu ao bom ladrão. Será suficiente encher de verdade tais momentos: o arrependimento pela falta cometida, a convicção de que a morte não é para sempre, a certeza de que Cristo é o inocente injustamente escarnecido. Tudo é possível a quem crê, porque mesmo na escuridão das prisões ressoa este anúncio cheio de esperança: «Nada é impossível a Deus» (Lc 1, 37). Se alguém lhe apertar a mão, o homem que foi capaz do crime mais horrendo poderá ser o protagonista da mais inesperada ressurreição. Certos de que, «mesmo quando narramos o mal, podemos aprender a deixar o espaço à redenção; podemos reconhecer, no meio do mal, também o dinamismo do bem e dar-lhe espaço» (Mensagem do Santo Padre para o Dia Mundial das Comunicações de 2020).
É assim que a Via Crucis se torna uma Via Lucis.
Embora os textos, reunidos pelo capelão Padre Marco Pozza e pela voluntária Tatiana Mario, estivessem escritos em primeira pessoa, decidiu-se não colocar o nome: quem participou nesta meditação quis emprestar a sua voz a todos aqueles que, no mundo, partilham a mesma condição. Nesta noite, no silêncio das prisões, a voz de um deseja tornar-se a voz de todos.
I Estação
Jesus é condenado à morte
«De novo, Pilatos dirigiu-lhes a palavra, querendo libertar Jesus. Mas eles gritavam: “Crucifica-O! Crucifica-O!” Pilatos disse-lhes pela terceira vez: “Que mal fez Ele, então? Nada encontrei n’Ele que mereça a morte. Por isso, vou libertá-Lo, depois de O castigar”. Mas eles insistiam em altos brados, pedindo que fosse crucificado, e os seus clamores aumentavam de violência. Então, Pilatos decidiu que se fizesse o que eles pediam. Libertou o que fora preso por sedição e homicídio, que eles reclamavam, e entregou-lhes Jesus para o que eles queriam» (Lc 23, 20-25).
I
Meditação duma pessoa presa, condenada a prisão perpétua.
Muitas vezes, nos tribunais e nos jornais, ribomba este grito «crucifica-o, crucifica-o!». É um grito que ouvi ressoar também sobre mim: fui condenado, juntamente com meu pai, a prisão perpétua. A minha crucificação começou quando era menino: quando penso nisto, revejo-me encolhido na camionete que me levava à escola, marginalizado pela minha gaguez, sem qualquer relacionamento. Comecei a trabalhar quando era criança, sem poder estudar: a ignorância prevaleceu sobre a minha ingenuidade. Além disso, o bullying roubou ímpetos de infância àquele menino nascido na Calábria na década de setenta. Sou mais parecido com Barrabás do que com Cristo, e todavia a condenação mais feroz continua a ser a da minha consciência: de noite, abro os olhos e procuro desesperadamente uma luz que ilumine a minha história.
Quando, fechado na cela, releio as páginas da Paixão de Cristo, desato a chorar: depois de vinte e nove anos de prisão, ainda não perdi a capacidade de chorar, de sentir vergonha da minha história passada, do mal praticado. Sinto-me Barrabás, Pedro e Judas numa única pessoa. O passado é algo que me faz arrepiar, mesmo sabendo que é a minha história. Vivi anos sob o regime restritivo do «41-bis» e o meu pai morreu confinado na mesma condição. Muitas vezes, de noite, ouvi-o chorar na cela. Fazia-o às escondidas, mas eu apercebia-me. Estávamos, ambos, na escuridão profunda. Mas, naquela não-vida, sempre procurei algo que fosse vida: pode parecer estranho, mas a prisão foi a minha salvação. Se, para alguém, sou ainda Barrabás, não me zango: sinto, no coração, que aquele Homem inocente, condenado como eu, veio procurar-me à prisão a fim de me educar para a vida.
II Estação
Jesus é carregado com a cruz
«Os soldados levaram-No para dentro do pátio, isto é, para o pretório, e convocaram toda a coorte. Revestiram-No de um manto de púrpura e puseram-Lhe uma coroa de espinhos, que tinham entretecido. Depois começaram a saudá-Lo: “Salve! Ó rei dos judeus!” Batiam-Lhe na cabeça com uma cana, cuspiam sobre Ele e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele. Depois de O terem escarnecido, tiraram-Lhe o manto de púrpura e revestiram-No das suas vestes. Levaram-No então para O crucificar» (Mc 15, 16-20).
II
Meditação de dois pais a quem assassinaram uma filha.
Naquele verão horrível, a nossa vida de pais morreu juntamente com a das nossas duas filhas. Uma foi assassinada com a amiga do coração pela violência cega dum homem sem compaixão; a outra, que sobreviveu por milagre, ficou privada para sempre do seu sorriso. A nossa foi uma vida de sacrifícios, baseada no trabalho e na família. Aos nossos filhos, ensinamos o respeito pelos outros e o valor do serviço prestado a quem é mais pobre. Muitas vezes nos perguntamos: «Porquê desabou, precisamente sobre nós, este mal?» E não encontramos paz. Nem mesmo a justiça, na qual sempre acreditamos, foi capaz de lenir as feridas mais profundas: a nossa condenação ao sofrimento permanecerá até ao fim.
O tempo não aliviou o peso da cruz, que nos colocaram aos ombros: não conseguimos esquecer que ela hoje já não está entre nós. Estamos envelhecidos, cada vez mais indefesos, e somos vítimas da pior dor que existe: sobreviver à morte duma filha.
Custa dizê-lo, mas, no momento em que o desespero parece prevalecer, o Senhor tem vindo de diferentes maneiras ao nosso encontro, dando-nos a graça de nos amarmos como esposos, apoiando-nos um no outro, embora com dificuldade. Ele convida-nos a manter aberta a porta da nossa casa ao mais frágil, ao desesperado, acolhendo quem bate à porta mesmo só para um prato de sopa. Para nós, ter feito da caridade o nosso mandamento é uma forma de salvação: não queremos render-nos ao mal. Com efeito, o amor de Deus é capaz de regenerar a vida, porque, antes de nós, o seu Filho Jesus experimentou o sofrimento humano para poder sentir, pelo mesmo, justa compaixão.
III Estação
Jesus cai pela primeira vez
«Na verdade, Ele tomou sobre Si as nossas doenças, carregou as nossas dores. Nós O reputávamos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre Ele, fomos curados pelas suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre Ele todos os nossos crimes» (Is 53, 4-6).
III
Meditação duma pessoa presa.
Foi a primeira vez que caí, mas aquela queda foi para mim a morte: tirei a vida a uma pessoa. Bastou um dia para passar duma vida irrepreensível à realização dum gesto no qual se encerra a violação de todos os mandamentos. Sinto-me a versão moderna do ladrão que se dirige a Cristo implorando «lembra-Te de mim». Mais do que arrependido, imagino-o como alguém que está consciente de se encontrar no caminho errado. Da minha infância, recordo o ambiente frio e hostil onde cresci: bastava individuar uma fragilidade no outro, para traduzi-la numa forma de divertimento. Procurava amigos sinceros, queria ser aceite como era, mas sem sucesso. Sofria para a felicidade dos outros, sentia os obstáculos que me criavam, só me pediam sacrifícios e regras que devia respeitar: senti-me um estranho para todos e procurei, a todo o custo, uma desforra da minha parte.
Não me dera conta de que o mal crescia, lentamente, dentro de mim. Até que, uma noite, soou a minha hora das trevas: num instante, como uma avalanche, desencadearam-se-me as lembranças de todas as injustiças sofridas na vida. A raiva assassinou a gentileza, cometi um mal imensamente maior do que todos aqueles que recebera. Depois, na prisão, a injúria dos outros tornou-se desprezo por mim mesmo: pouco faltava para acabar com a vida, estava no limite extremo. Arrastara também a minha família para o precipício: por minha causa, perderam o seu sobrenome, a boa reputação; tornaram-se apenas a família do assassino. Não procuro desculpas nem descontos; expiarei a minha pena até ao seu último dia, porque na prisão encontrei pessoas que me devolveram a confiança perdida.
Não pensar que existia no mundo a bondade, foi a minha primeira queda. A segunda, o homicídio, foi quase uma consequência: já estava morto por dentro.
IV Estação
Jesus encontra a Mãe
«Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua Mãe e a irmã da sua Mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua Mãe e o discípulo que Ele amava, disse à Mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois, disse ao discípulo: “Eis a tua Mãe!” E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-A como sua» (Jo 19, 25-27).
IV
Meditação da mãe duma pessoa presa.
Nem sequer por um momento senti a tentação de abandonar o meu filho à sua pena. No dia da sua prisão, toda a nossa vida mudou: a família inteira entrou com ele na prisão. Ainda hoje não se aplaca o juízo das pessoas, é uma lâmina afiada: o dedo em riste contra todos nós torna mais pesado o sofrimento que já trazemos no coração.
As feridas crescem a cada dia que passa, tirando-nos até a respiração.
Sinto a proximidade de Nossa Senhora: ajuda-me a não me deixar esmagar pelo desespero, a suportar a maldade. A Ela, confiei o meu filho: só a Maria posso confiar os meus temores, já que Ela própria os experimentou enquanto subia para o Calvário. No seu coração, sabia que o Filho não poderia escapar à maldade do homem, mas não O abandonou. Estava lá, partilhando a sua dor, fazendo-Lhe companhia com a sua presença. Imagino que Jesus, elevando o olhar, cruzasse seus olhos com os d’Ela cheios de amor; e já não Se sentisse só.
Assim quero fazer também eu.
Tomei sobre mim as culpas do meu filho, pedi perdão também pelas minhas responsabilidades. Sobre mim imploro a misericórdia que só uma mãe consegue sentir, para que o meu filho possa voltar a viver depois de ter expiado a sua pena. Rezo continuamente por ele, para que possa, dia após dia, tornar-se um homem diferente, capaz de amar novamente a si mesmo e aos outros.
V Estação
Jesus é ajudado pelo Cireneu
«Quando O iam conduzindo, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus» (Lc 23, 26).
V
Meditação duma pessoa presa.
Com a minha profissão, ajudei gerações de crianças a caminharem com a coluna vertebral direita. Mas, um dia, achei-me por terra. Foi como se me tivessem quebrado a coluna: o meu trabalho tornou-se o motivo invocado para uma condenação infamante. Entrei na prisão: a prisão entrou na minha casa. Desde então, tornei-me um vagabundo para a cidade: perdi o meu nome, chamam-me pelo nome do crime de que me acusa a justiça; já não sou o dono da minha vida. Quando penso nisso, vem-me à mente aquela criança de sapatos rotos, os pés encharcados, as roupas usadas: eu era então aquela criança. Mais tarde, um dia prenderem-me: três homens de uniforme, um protocolo rígido, a prisão que me engole vivo no seu cimento.
A cruz que me carregaram aos ombros, é pesada. Com o tempo, aprendi a conviver com ela, a olhá-la de frente, a chamá-la pelo nome: passamos noites inteiras fazendo-nos companhia uma ao outro. Dentro das prisões, Simão de Cirene, todos o conhecem: é o segundo nome dos voluntários, de quem sobe este calvário para ajudar a levar uma cruz; são pessoas que rejeitam a lei da quadrilha, ouvindo a sua consciência. Depois, Simão de Cirene, é o meu companheiro de cela: conheci-o na primeira noite passada na prisão. Era um homem que vivera durante anos num banco do jardim, sem afetos nem rendimentos. A sua única riqueza era uma caixa de brioches. Ele, guloso de doces, insistiu para que a levasse a minha esposa na primeira vez que ela me veio ver: ela chorou por aquele gesto tão inesperado como carinhoso.
Estou envelhecendo na prisão: sonho voltar um dia a confiar no homem.
Tornar-me um cireneu da alegria para alguém.
VI Estação
A Verónica limpa o rosto de Jesus
«O meu coração murmura por Ti,
os meus olhos Te procuram;
é a tua face que eu procuro, Senhor.
Não desvies de mim o teu rosto,
nem afastes, com ira, o teu servo.
Tu és o meu amparo: não me rejeites nem abandones,
ó Deus, meu salvador!» (Sal 27/26, 8-9).
VI
Meditação duma catequista da paróquia.
Como catequista limpo tantas lágrimas, deixando-as correr: não se podem conter dentro das margens as inundações de corações dilacerados. Muitas vezes encontro homens desesperados que, nas trevas da prisão, procuram um porquê do mal que lhes parece infinito. Estas lágrimas têm o sabor da derrota e da solidão, do remorso e da falta de compreensão. Muitas vezes imagino Jesus na prisão no meu lugar: Como limparia aquelas lágrimas? Como apaziguaria a angústia daqueles homens que não encontram uma via de saída para aquilo que se tornaram, sucumbindo ao mal?
Encontrar uma resposta é um exercício árduo, muitas vezes incompreensível para as nossas lógicas humanas, pequenas e limitadas. O caminho que Cristo me sugere, é contemplar sem medo aqueles rostos desfigurados pelo sofrimento. É-me pedido para ficar ali, ao pé, respeitando os seus silêncios, ouvindo a dor, procurando olhar para além dos preconceitos. Tal como Cristo fixa, com olhos cheios de amor, as nossas fragilidades e as nossas limitações. A cada um, incluindo as pessoas presas, todos os dias é oferecida a possibilidade de se tornar uma pessoa nova, graças àquele olhar que não julga, mas infunde vida e esperança.
E assim as lágrimas caídas podem tornar-se o gérmen duma beleza que era difícil até mesmo de se imaginar.
VII Estação
Jesus cai pela segunda vez
«Jesus dizia: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”. Depois, deitaram sortes para dividirem entre si as suas vestes» (Lc 23, 34).
VII
Meditação duma pessoa presa.
Quando passava em frente duma prisão, voltava a face para o outro lado. «Pois eu – dizia cá para mim – nunca irei parar lá dentro». Nas vezes que a olhava, respirava melancolia e escuridão: parecia-me passar junto dum cemitério de mortos vivos. Um dia, porém, acabei eu atrás das grades, juntamente com meu irmão. E como se isto não bastasse, trouxe cá para dentro também o meu pai e a minha mãe. De terra estranha que era, a prisão tornou-se a nossa casa: nós, homens, estávamos numa cela; a nossa mãe, noutra. Eu olhava para eles, e sentia vergonha de mim mesmo: deixei de sentir vontade de me chamar homem. Estão a envelhecer na prisão por culpa minha.
Caí por terra duas vezes. A primeira, quando o mal me fascinou e eu cedi: vender droga, aos meus olhos, valia mais do que o trabalho do meu pai que rompia as costas dez horas por dia. A segunda foi quando, depois de ter arruinado a família, comecei a interrogar-me: «Quem sou eu, para que Cristo morra por mim?» O grito de Jesus – «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» – leio-o nos olhos de minha mãe: tomou sobre si a vergonha de todos os homens da casa, para salvar a família. E tem o rosto de meu pai, que, às escondidas, se desesperava na cela. Só hoje consigo admiti-lo: naqueles anos, eu não sabia o que fazia. Agora que o sei, com a ajuda de Deus estou procurando reconstruir a minha vida. Devo isto aos meus pais: há alguns anos, venderam as nossas coisas mais queridas, porque não me queriam vagabundo pela estrada. Devo isto sobretudo a mim mesmo: a ideia de que o mal continue a mandar na minha vida é insuportável. Esta tornou-se a minha via-sacra.
VIII Estação
Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
«Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. Jesus, voltou-Se para elas e disse-lhes: “Filhas de Jerusalém, não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos; pois virão dias em que se dirá: ‘Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram’. Hão de, então, dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’ ” » (Lc 23, 27-30).
VIII
Meditação da filha dum homem condenado a prisão perpétua.
Como filha duma pessoa presa, quantas vezes ouvi fazer-me a pergunta: «Gostas do pai… Mas já alguma vez pensaste no sofrimento que teu pai causou às vítimas?» Em todos estes anos, nunca me esquivei de dar resposta: «Com certeza; é-me impossível – digo – não pensar nisso». Depois, também eu lhes faço uma pergunta: «Já alguma vez pensaste que eu fui a primeira de todas as vítimas das ações de meu pai? Desde há vinte e oito anos que estou descontando a pena de crescer sem pai». Ao longo de todos estes anos, vivi com raiva, inquietação, melancolia: a sua falta é cada vez mais pesada de suportar. Atravessei de sul a norte a Itália, para estar ao pé dele: conheço as cidades não pelos seus monumentos, mas pelas prisões que visitei. Pareço Telémaco quando parte à procura de seu pai Ulisses: a minha é uma «Volta à Itália» de prisões e de afetos.
Anos atrás, perdi o amor, porque sou filha dum homem preso, a minha mãe caiu vítima de depressão, a família desabou. Fiquei eu, com o meu pequeno salário, a suportar o peso desta história em frangalhos. A vida forçou-me a ser mulher, sem me deixar tempo de ser menina. Em nossa casa, é tudo uma via-sacra: o pai é um dos condenados a prisão perpétua. No dia em que me casei, sonhava tê-lo a meu lado: também então pensou em mim a centenas de quilómetros de distância. «É a vida!» – vou repetindo a mim mesma para ganhar coragem. É verdade! Há pais que, por amor, aprendem a esperar que os filhos amadureçam. A mim, por amor, acontece de esperar o regresso do pai.
Para aqueles como nós, a esperança é uma obrigação.
IX Estação
Jesus cai pela terceira vez
«É bom para o homem carregar o jugo, desde a sua juventude. Que se recolha em silêncio, quando o Senhor o põe à prova; que ponha a sua boca na cinza, talvez encontre esperança; que apresente a face a quem o fere e suporte as afrontas. Porque o Senhor não rejeita ninguém para sempre. Embora castigue, tem compaixão, porque é grande o seu amor» (Lam 3, 27-32).
IX
Meditação duma pessoa presa.
Cair por terra nunca é agradável; mas cair uma e outra vez, além de não ser bonito, torna-se também uma espécie de condenação, como se a pessoa já não fosse capaz de ficar de pé. Como homem, caí demasiadas vezes: e o mesmo número de vezes me levantei. Na prisão, penso frequentemente nas inúmeras vezes que uma criança cai por terra antes de aprender a caminhar: vou-me convencendo de que tais quedas servem de ensaio geral para quando se cair, mais tarde, já adultos. Quando era criança, vivi a prisão dentro de casa: vivia na angústia da punição, alternando entre a tristeza dos adultos e a despreocupação das crianças. Daqueles anos, recordo a irmã Gabriela, a única imagem de festa: foi a única a entrever o melhor dentro do meu pior. Como Pedro, procurei e encontrei mil desculpas para os meus erros: o facto estranho é que um fragmento de bem ficou sempre aceso dentro de mim.
Na prisão, tornei-me avô: perdi a gravidez da minha filha. À minha neta, um dia, não contarei o mal que cometi, mas apenas o bem que encontrei. Falar-lhe-ei de quem, quando eu estava por terra, me trouxe a misericórdia de Deus. Na prisão, o verdadeiro desespero é sentir que já nada da tua vida tem sentido: é o ápice do sofrimento, sentes-te a pessoa mais sozinha de todos os solitários no mundo. É verdade que fiquei desfeito em mil pedaços, mas o belo é que estes pedaços ainda se podem, todos, recompor. Não é fácil; mas é a única coisa que ainda tem um significado aqui dentro.
X Estação
Jesus é despojado das suas vestes
«Os soldados, depois de terem crucificado Jesus, pegaram na roupa d’Ele e fizeram quatro partes, uma para cada soldado, exceto a túnica. A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo, não tinha costuras. Então, os soldados disseram uns aos outros: “Não a rasguemos, tiremo-la à sorte para ver a quem tocará.” Assim se cumpriu a Escritura que diz: Repartiram entre eles as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes» (Jo 19, 23-24).
X
Meditação duma educadora penitenciária.
Como educadora penitenciária, vejo entrar na prisão o homem desprovido de tudo: vem despojado de toda a dignidade por causa das culpas cometidos, de todo o respeito por si e pelos outros. Todos os dias me dou conta de que a sua autonomia diminui atrás das grades: precisa de mim mesma para escrever uma carta. São estas criaturas alienadas que me estão confiadas: homens desamparados, exasperados na sua fragilidade, muitas vezes privados do necessário para entender o mal cometido. Por vezes, parecem bebés recém-nascidos que ainda podem ser moldados. Percebo que a sua vida pode recomeçar com outra direção, virando as costas definitivamente ao mal.
Porém, as minhas forças debilitam-se com o passar dos dias. Ser uma miscelânea de raiva, sofrimento e maldades incubadas, acaba por desgastar mesmo o homem e a mulher mais preparados. Escolhi este trabalho depois que a minha mãe foi morta num acidente frontal por um rapaz drogado: àquele mal, decidi imediatamente responder com o bem. Mas, apesar de gostar deste trabalho, às vezes custa-me encontrar a força para continuar.
Neste serviço tão delicado, precisamos de não nos sentir abandonados para podermos apoiar as inúmeras existências que nos são confiadas e que diariamente correm o risco de naufragar.
XI Estação
Jesus é pregado na cruz
«Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, crucificaram-No a Ele e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem.” Depois deitaram sortes para dividirem entre si as suas vestes. O povo permanecia ali, a observar; e os chefes zombavam, dizendo: “Salvou os outros; salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito”. Os soldados também troçavam d’Ele. Aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo”. E por cima d’Ele havia uma inscrição: “Este é o rei dos judeus”. Ora, um dos malfeitores que tinham sido crucificados insultava-O, dizendo: “Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também”. Mas o outro, tomando a palavra, reprendeu-o: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo que as nossas ações mereciam; mas Ele nada praticou de condenável”. E acrescentou: “Jesus, lembra-Te de mim, quando estiveres no teu Reino”. Ele respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso” » (Lc 23, 33-43).
XI
Meditação dum sacerdote acusado e depois absolvido.
Cristo pregado na cruz. Quantas vezes, como sacerdote, meditei sobre esta página do Evangelho. Mas, quando um dia me meteram na cruz, senti todo o peso daquele lenho: a acusação era feita de palavras duras como pregos, a subida tornou-se íngreme, o sofrimento penetrou-me na pele. O momento mais escuro foi quando vi o meu nome afixado fora do tribunal: naquele momento, compreendi que era um homem obrigado a demonstrar a sua inocência, sem ser alguém culpado. Fiquei pendurado na cruz durante dez anos: foi a minha via-sacra povoada por dossiês, suspeitas, acusações, insultos. Nos tribunais, sempre procurava o Crucifixo pendurado: fixava-o enquanto a lei investigava sobre a minha história.
Por um momento, a vergonha levou-me a pensar que seria melhor acabar com a vida. Depois, porém, decidi continuar a ser o padre que sempre fui. Nunca pensei em encurtar a cruz, nem sequer quando a lei mo concedia. Escolhi sujeitar-me ao julgamento comum: devia-o a mim, aos rapazes que eduquei nos anos do Seminário, às suas famílias. Na subida do meu calvário, encontrei-os a todos ao longo do caminho: tornaram-se os meus cireneus, suportaram comigo o peso da cruz, limparam-me tantas lágrimas. Muitos deles rezaram, juntamente comigo, pelo rapaz que me acusou: e nunca deixaremos de o fazer. No dia em que fui absolvido com fórmula plena, descobri que era mais feliz do que dez anos antes: palpei a ação de Deus na minha vida. Pendurado na cruz, o meu sacerdócio iluminou-se.
XII Estação
Jesus morre na cruz
«Por volta do meio-dia, as trevas cobriram toda a região até às três da tarde. O sol tinha-se eclipsado e o véu do templo rasgou-se ao meio. Dando um forte grito, Jesus exclamou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Dito isto, expirou» (Lc 23, 44-46).
XII
Meditação de um juiz supervisor.
Como juiz supervisor, não posso pregar um homem, seja ele quem for, na sua condenação: isto significaria condená-lo pela segunda vez. É necessário que o homem expie o mal que cometeu: não o fazer significaria banalizar os seus crimes, justificar as ações intoleráveis por ele realizadas que acarretaram a outros sofrimento físico e moral.
Mas, só é possível uma verdadeira justiça através da misericórdia, que não prega o homem na cruz para sempre: oferece-se como guia para o ajudar a levantar-se, ensinando-lhe a agarrar o bem que, não obstante o mal feito, nunca se apaga completamente no seu coração. Somente reencontrando a sua humanidade é que a pessoa condenada poderá reconhecê-la no outro, na vítima a quem provocou sofrimento. Por mais tortuoso que possa ser o seu percurso de renascimento e sempre continue à espreita o risco de recair no mal, não existem outras estradas para procurar reconstruir uma história pessoal e coletiva.
A rigidez do julgamento coloca a dura prova a esperança do homem: ajudá-lo a refletir perguntando-se pelos motivos das suas ações poderia tornar-se a ocasião para se olhar doutra perspetiva. Mas, para o fazer, é necessário aprender a reconhecer a pessoa escondida por trás da falta cometida. Deste modo, às vezes consegue-se vislumbrar um horizonte que pode infundir esperança nas pessoas condenadas e, uma vez expiada a pena, devolvê-las à sociedade, convidando os homens a recebê-las de volta depois de as terem talvez antes rejeitado.
Porque todos, inclusive como condenados, somos filhos da mesma humanidade.
XIII Estação
Jesus é descido da cruz
«Um membro do Conselho, chamado José, homem reto e justo, não tinha concordado com a decisão nem com o procedimento dos outros. Era natural de Arimateia, cidade da Judeia, e esperava o Reino de Deus. Foi ter com Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus. Descendo-o da cruz, envolveu-o num lençol e depositou-o num sepulcro talhado na rocha, onde ainda ninguém tinha sido sepultado» (Lc 23, 50-53).
XIII Meditação dum frade voluntário.
Desde sempre, as pessoas presas foram os meus professores. Há sessenta anos que entro nas prisões como frade voluntário e sempre bendisse o dia em que, pela primeira vez, encontrei este mundo escondido. Naqueles olhares, compreendi com clareza que, no lugar deles, poderia estar eu, se a minha vida tivesse tomado uma direção diferente. Frequentemente nós, cristãos, caímos na armadilha de nos sentir melhor que os outros, como se o facto de estar na condição de poder cuidar dos pobres nos permitisse uma superioridade tal que nos faz arvorar em juízes dos outros, condenando-os todas as vezes que quisermos e sem qualquer apelo.
Na sua vida, Cristo decidiu e quis estar com os últimos: percorreu as periferias abandonadas do mundo no meio de ladrões, leprosos, prostitutas, intrujões. Quis compartilhar miséria, solidão, perturbação. Sempre pensei que fosse este o verdadeiro significado das suas palavras «estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 36).
Passando duma cela a outra, vejo a morte que vive lá dentro. A prisão continua a sepultar homens vivos: são histórias, de que ninguém mais quer saber. A mim, Cristo continua a repetir-me: «Continua, não pares. Pega neles ainda ao colo». Não posso deixar de O ouvir: mesmo dentro do pior dos homens, está sempre Ele, por mais enlameada que se encontre a sua memória. Tenho apenas de conter a minha pressa, deter-me em silêncio diante daqueles rostos devastados pelo mal e ouvi-los com misericórdia. É a única maneira que conheço de acolher o homem, afastando do meu olhar o erro que cometeu. Só assim poderá ele fiar-se e reencontrar a força de se render ao Bem, imaginando-se diferente de como se vê agora.
Senhor Jesus, o teu corpo deformado por tanto mal, agora, é embrulhado num lençol e entregue à terra nua: eis a nova criação. Confiamos a teu Pai a Igreja, que nasce do teu lado aberto, para que jamais se renda ao insucesso e às aparências, mas continue a sair levando a todos a boa nova da salvação.
XIV Estação
Jesus é sepultado
«Era o dia da Preparação e já começava o sábado. Entretanto, as mulheres que tinham vindo com Ele da Galileia acompanharam José, observaram o túmulo e viram como o corpo de Jesus fora depositado. Ao regressar, prepararam aromas e perfumes; e, durante o sábado, observaram o descanso, conforme o preceito» (Lc 23, 54-56).
XIV
Meditação dum guarda penitenciário.
Todos os dias, na minha missão de agente da Polícia Penitenciária, palpo o sofrimento de quem vive recluso. Não é fácil enfrentar quem foi vencido pelo mal e infligiu enormes feridas a outros homens, complicando as suas vidas. Contudo, na prisão, a indiferença cria novos danos na história de quem falhou e está a pagar a sua conta à justiça. Um colega, que me serviu de professor, costumava repetir: «A prisão transforma-te: um homem bom pode tornar-se um homem sádico. E um malvado poderia tornar-se melhor». O resultado depende também de mim, e cerrar os dentes é essencial para se alcançar o objetivo do nosso trabalho: dar outra chance a quem favoreceu o mal. Para conseguir isto, não posso limitar-me a abrir e fechar uma cela, mas devo fazê-lo com um toque de humanidade.
Respeitando os tempos de cada um, lentamente podem florescer as relações humanas, mesmo dentro deste mundo pesante. Traduzem-se em gestos, atenções e palavras capazes de fazer a diferença, ainda que pronunciadas em voz baixa. Não me envergonho de exercer o diaconado permanente, vestindo o uniforme de que me ufano. Conheço o sofrimento e o desespero: provei-os em mim mesmo quando era criança. O meu humilde desejo é ser um ponto de referência para quem encontro entre as grades. Trabalho duro para defender a esperança de pessoas resignadas com o que são, apavoradas com o pensamento de um dia saírem e correrem o risco de ser rejeitadas mais uma vez pela sociedade.
Na prisão, lembro-lhes que, com Deus, nenhum pecado terá jamais a última palavra.
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