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  • Writer's pictureRui Marques

A sociedade bodexpiatória

Li recentemente, na Revista do Expresso, este artigo de Luís Pedro Nunes. Creio que é essencial partilhá-lo convosco, citando-o com a devida vénia, a bem do “serviço público”.


(Expresso, 13.1.2023)


SABEMOS E APONTAMOS O DEDO AOS CULPADOS DE TODO O MAL. SE SÃO OU NÃO MESMO CULPADOS, POUCO INTERESSA


Tendemos a pensar em nós como “pequenos deuses”, ao ponto de imaginar que “todos os nossos desejos dependem de nós e não são produto de outros sobre nós. E quando a coisa não corre como esperado, o mais natural é que a culpa não seja nossa, mas desses outros”. Os humanos têm um formidável mecanismo de “transferência de culpa” que os mantém de consciência limpa, como indivíduos, e coesos, como grupo. A este mecanismo chamamos simplesmente “bode expiatório”, e até parece que é uma coisa rara, que acontece de vez em quando, e que pertence aos livros de História. Erro. A nossa sociedade foi fundada, existe e sobrevive com base na figura do bode expiatório. Hoje, mais do que nunca. No dia a dia.


A expressão “bode expiatório” surge do livro do Levítico do Antigo Testamento, onde se conta que no Yom Kippur, Dia da Expiação, os hebreus apartavam dois animais do rebanho. Um deles era sacrificado e o outro largado no deserto depois de o sacerdote ter confessado os pecados do povo de Israel sobre a sua cabeça, purificando assim toda a comunidade. O desgraçado do bode, que não tinha culpa de nada, expiava o pecado de todos. Daí, a expressão.


Este mecanismo de criar um bode expiatório está presente em toda a civilização, quer a nível individual quer a nível grupal, e tem sido amplamente estudado desde os anos 40 pela antropologia e pela filosofia enquanto interpretação da cultura humana. As pessoas criam um bode expiatório quando “há uma verdade fundamental que não querem aceitar, e por isso um bode expiatório tem um propósito muito específico. Uma pessoa ou a sociedade pode transferir a culpa, e ao exilar essa ‘causa’, imaginar que as razões dos seus problemas terminaram. Fazemo-lo porque produz um sentido catártico de alívio ou cura. Alguém tem de pagar, se é ‘culpada’ ou inocente é irrelevante”, diz Luke Burgis, que escreve sobre estes assuntos. Criar um bode expiatório faz-nos sentir bem porque é um modo de nos protegermos do sofrimento. Alguém vai pagar o preço dos nossos pecados, das nossas fraquezas. O bode expiatório é também uma forma de “criar identidade”.


Ora, tendo isto em conta, saltam-me à mente casos da História que vão da crucificação de Jesus ao Holocausto dos judeus na Alemanha nazi, mas ocorre-me também a matança da Páscoa de 1506, em que uma multidão perseguiu e matou em Lisboa milhares de judeus acusados de serem a causa da fome e da seca que assolavam o país. Também as caças às bruxas (“verdadeiras” ou figurativas) ao logo dos tempos foram modos de encontrar um bode expiatório.


O que talvez tenhamos mais dificuldade em compreender é que todos nós, de alguma maneira, funcionamos, mesmo que a um nível micro, dessa forma. Passamos a vida a projetar nos outros culpas injustificadas. Em pequenos eventos do quotidiano. No trabalho. Em discussões familiares. Em análises políticas em que seguimos os maiores produtores de bodes expiatórios: os líderes políticos — a culpa é dos patrões ou dos imigrantes. A “bodexpiação” é o composto de onde cresce a discursividade política extremista colhida das polémicas de raiva e ódio que constituem o discurso das redes sociais. O Twitter é uma fábrica de bodes expiatórios em que os diferentes lados de barricadas apontam nomes, raças, tipologias, profissões — o que seja — como culpados, como sementes dos males do mundo e do seu dia. E como esta coisa do bode expiatório sempre necessitou do chamado “desejo mimético” para crescer, as redes são hoje o local ideal para, de repente, a tal “cultura de cancelamento” de todos os sectores da sociedade batizado com vários nomes não seja mais do que a amplificação de microbodes expiatórios.


Nas palavras de uma psicanalista jungiana: “O que a maior parte das pessoas não percebe é que estão a tentar expelir alguns dos seus sentimentos ao passá-los para os outros.” O bodexpiatorismo é hoje descrito como “um mecanismo de defesa. Uma estratégia inconsciente que muitas vezes reflete sentimentos dos próprios, que demonstram estar a lutar financeiramente, ou em relações falhadas, ou aterrorizados em perder o controlo, e por isso inconscientemente utilizam este instrumento para se defenderem”. Já os grupos de ódio exploram a suscetibilidade. O bodexpiatorismo não só é catártico como dá um “sentido de virtude” ao escolher os outros como “maus” ou inferiores. O que pode levar à justificação da violência. A violência racista é assim vista como sendo um ato de autodefesa, em vez daquilo que verdadeiramente é: um ato de puro e imperdoável racismo. O que hoje chamamos “sociedade polarizada” não é mais do que uma sociedade “bodexpiatorizada”. De um lado e de outro, todos os culpados estão assinalados. Só falta enviá-los para o deserto.


É assim que a extrema-direita e os movimentos populistas e as teorias da conspiração têm hoje uma capacidade de atração que à superfície parece incompreensível, e que não é captável nas sondagens. O mecanismo de bode expiatório é o grande albergue dos partidos extremistas, onde não há medo de se apontar dedos e prometer a ação que nos salvará. Mas este é um ato grupal. A expiação tem de ser levada a cabo pela multidão: banir o culpado (o negro, o cigano, o gay, o elitista) para assim o castigar. Mas se me vierem perguntar, pessoalmente serei incapaz de admitir que sou essa pessoa. Nós somos pequenos deuses que não cometemos injustiças.

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