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  • Writer's pictureRui Marques

Excerto do Livro “Construir Pontes – Ubuntu” sobre a leitura dos nossos tempos.


"Há sempre a tentação de olhar o tempo que vivemos como único e, sobretudo, particularmente dramático. Acrescentamos-lhe mesmo, em dias mais difíceis, um toque de “final dos tempos” ou de apocalipse anunciado. Ainda que, em estrito senso, nada se repita, bem sabemos que a História se “repete”, quase pendularmente, num vaivém de sonho e de pesadelo, de virtude e de maldade, de luz e de sombras. Por isso, há que saber ler os sinais dos tempos, mas com a serenidade que nos permita não perder nem a lucidez, nem a esperança. Dito isto, há que olhar com coragem e desassombro para os desafios que enfrentamos, por mais difíceis que sejam, para que possamos sobre eles agir.


Que tempos nos são dados viver então? Situamo-nos no quadro de uma União Europeia marcada por turbulências e desacertos crescentes, depois de décadas de crescimento económico e de consolidação de um notável modelo social, fruto de um projeto político único. Há um desconforto no ar, próprio das vésperas de tempestade.


No início deste século, já com duas décadas decorridas, podemos identificar algumas linhas de fratura que devem merecer atenção. A dimensão que mais impressiona quando olhamos a Europa dos nossos dias é, na nossa perspetiva, o ciclo do medo. Aparentemente pode parecer estranho, mas o medo decorrente da incerteza, da insegurança e da complexidade domina grande parte da nossa vida social, à escala micro ou a nível continental. Bauman diz mesmo que “o medo é o grande demónio do nosso tempo”. Vanier (2018) lembra-nos que “é o medo que nos impede de sermos mais humanos, ou seja, que nos impede de crescer e mudar. (..) O medo procura sempre um alvo.”

De onde nasce, então, este medo?


Comecemos pela incerteza. A pós-modernidade, marcada pela mudança permanente, trouxe-nos a incerteza como a única certeza. Bauman fala-nos mesmo da “modernidade líquida”, na qual “nada é para durar” e tudo está em permanente mudança. Hoje, alguns outros autores avançam mesmo para a metáfora de um outro estado - o gasoso – para descrever o nosso tempo, expressando esta total volatilidade que vivemos. Essa mudança que em tempos idos tinha uma escala temporal acomodável a uma vida previsível, feita de ciclos longos, transformou-se agora em mudança constante. Nascer, viver e morrer no mesmo contexto, na mesma comunidade é, hoje, altamente improvável, mas sobretudo prever o dia de amanhã é um exercício de pura adivinhação. Com o afundamento da capacidade de prever, esvaiu-se a possibilidade (séria) de planear. O planeamento vive dias difíceis. Hoje é preciso revalorizar a “navegação à vista”, a gestão de múltiplos cenários possíveis, a flexibilidade total ou a capacidade de adaptação a todo o momento.


Esta imprevisibilidade de que nos fala também Taleb, no seu “Cisne Negro”, defendendo que “simplesmente não conseguimos prever” ganha particular significado quando à imprevisibilidade se soma o alto impacto de eventos inimagináveis (até que acontecem), como foi o caso do atentado às torres gémeas, em 11 de setembro de 2001. É fácil compreender que quando a incerteza pode ter uma amplitude extrema, sendo o “número dos reais superior ao número dos possíveis”, o medo “do que possa acontecer” torna-se avassalador e condiciona tudo.


Associado a esta dinâmica da incerteza, outros pensadores, como Ulrich Beck, sublinham a dimensão da “sociedade do risco” que nos leva a organizar-nos em sociedade em função da gestão dos riscos, sejam de natureza ambiental – a sua primeira preocupação – mas também económica ou social. Giddens, por outro lado, que também reflete sobre esta questão, sublinha que esta dimensão do “risco” está naturalmente ligada à ideia de probabilidade e incerteza e que a consciência da sua existência aumentou significativamente ao longo dos últimos séculos. Judt, no seu Tratado sobre os Nossos Descontentamentos, sublinha, por sua vez, a insegurança económica, política e física, para justificar uma “política do medo” e refere:

“Começámos uma época do medo. A insegurança volta a ser um ingrediente activo da vida política nas democracias ocidentais. A insegurança gerada pelo terrorismo, é claro; mas também, e insidiosamente, medo do ritmo incontrolável da mudança, medo da perda de emprego, medo de perder terreno para os outros numa distribuição de recursos cada vez mais desigual, medo de perder o controlo das circunstâncias e rotinas. E talvez, sobretudo, medo de que talvez não sejamos só nós que já não conseguimos moldar as nossas vidas, mas que também que quem manda tenha perdido o controlo, para forças fora do seu alcance.” (Judt, 2010)

O crescimento da incerteza (e, em consequência, da insegurança) tem uma explicação. A incerteza é filha da complexidade. As sociedades europeias (é mais ajustado falar no plural) têm vindo a experimentar um aumento exponencial da complexidade. Para compreender melhor esta realidade vale a pena regressar à teoria dos sistemas. Esta abordagem leva-nos à ambição de entender a realidade, a partir da compreensão de um todo - mais do que de partes isoladas - a partir da interação das suas partes e o que emerge de novo dessas interações. É, por isso, muito importante no pensamento sistémico olhar para os “nós” da rede e as “relações” estabelecidas entre os vários nós.


Nessas interações em sistemas pode surgir uma dimensão paradoxal, designada de causalidade não-linear, em que um determinado efeito não resulta de uma causa proporcional ou previsível. Dito de outro modo, um evento (aparentemente) irrelevante pode ter consequências catastróficas e, pelo contrário, um grande impulso pode deixar tudo na mesma. Esta ausência de um padrão constante e linear entre causas e efeitos complica tudo. A visão sistémica traz-nos também o paradigma relacional, no qual se sublinha que tudo o que acontece decorre de relações e dos processos, quase sempre numa dinâmica de interdependência e de retroalimentação. Contudo, o que faz verdadeiramente disparar a complexidade é a diferença entre um “sistema aberto” e um “sistema fechado”. Enquanto neste é possível determinar todos os elementos que o integram e listar todas as relações e interações que se podem estabelecer, num sistema aberto tal não é possível, ou seja, não é possível prever tudo o que pode vir a acontecer, pelo que a surpresa estará sempre ao virar de cada esquina.


Ora torna-se evidente que as nossas sociedades se foram abrindo cada vez mais, também nesta perspetiva dos sistemas. A globalização, com o crescimento gigantesco das trocas comerciais de bens, serviços e de fluxos financeiros, a par da facilidade da mobilidade humana, do desenvolvimento da sociedade de informação (desde os media globais à interconexão planetária de redes de comunicação digital e dos respetivos fluxos) e das interações humanas, transformou-nos numa teia complexa e imprevisível. Innerarity (2009) descreve esta realidade desta maneira:


“A sociedade é complexa pelo aspecto que nos oferece (heterogeneidade, dissensão, caso, desordem, diferença, ambivalência, fragmentação, dispersão), pela sensação que produz (intransparência, incerteza, insegurança), pelo que pode ou não fazer com ela (ingovernabilidade, inacessibilidade) (Innerarity, 2009)

Regressando a Giddens (1998), que se debruça particularmente sobre a correlação entre globalização e risco, sublinham-se as seguintes dimensões:

  1. Globalização do risco, no sentido da intensidade

  2. Globalização do risco, no sentido do crescente número de acontecimentos contingentes que afetam todas as pessoas

  3. Risco decorrente do ambiente criado ou natureza socializada

  4. Desenvolvimento de ambientes de risco institucionalizado

  5. Consciência do risco, enquanto risco

  6. Consciência bem difundida do risco

  7. Consciência das limitações da pericialidade

Esta expressão da complexidade assusta já não só pela incerteza e pela imprevisibilidade, mas também pela impotência de ação face aos seus efeitos, ou mesmo de prevenção do seu desencadeamento. Ainda nas palavras deste filósofo basco, “a dinâmica da sociedade ameaça-nos com riscos sistémicos que realmente nos tocam, mas essas cadeias causais são tão complexas, indiretas e opacas que se torna muito difícil combatê-las” (Innerarity, 2009). Torna-se difícil viver (bem) assim.


Há uma outra dinâmica em curso que é simultaneamente causa e consequência das anteriores: o crescimento da desconfiança. Sabemos bem que o que nos permite viver juntos é uma dose significativa de confiança mútua, vital para vida em sociedade. Os níveis de confiança, expressos em capital social, fazem a diferença entre sociedades bem-sucedidas e aquelas que falham, como bem refere Alain Peyrefitte, na sua obra “A sociedade de confiança”. A confiança entre os cidadãos, entre estes e as instituições e entre as instituições é um processo dinâmico, mediado – em parte - pelos meios de comunicação e pela perceção do bom funcionamento das instituições. Fruto quer de erros e disfunções institucionais, como a corrupção ou o mau funcionamento da justiça, quer também de uma cultura mediática de “attack dog” e de “fábrica de escândalos”, a que se somou mais recentemente o efeito perverso das “fake-news” nas redes sociais, vai-se instalando uma desconfiança endémica que nos leva a desconfiar de tudo e de todos, a todo o tempo.

Não se torna difícil, neste quadro, perceber que o medo tenha crescido e, em grande medida, nos tenha capturado. Importa, por isso, refletir um pouco sobre esta sensação e o que ela nos desperta. A nível individual, sabemos que o medo é um processo neuronal de resposta a um dado estímulo e que conduz tipicamente a uma de três respostas: paralisa-nos, gera uma agressão enquanto processo de proteção ou faz-nos fugir. Em si mesmo, pode ser um instinto positivo, de autoproteção perante ameaças, absolutamente necessário para a sobrevivência, mas o medo descontrolado e irracional pode corresponder a uma força profundamente destruidora: do próprio e de quem o rodeia.


Para esta reflexão, importa sobretudo estar atento à resposta agressiva como reação ao medo sentido, particularmente quando partilhada por muitos indivíduos, numa dada sociedade. Passando do indivíduo para o grupo, os especialistas da Etologia, como Eilb-Eibesfeldt, alertaram para o risco que “uma situação de ativação de estímulos (libertadores de agressividade) bastante eficaz é a ameaça efetiva ou imaginária de que é alvo o grupo sobre a qual ela incide. Ela desperta fortes emoções no grupo e os demagogos de todas as épocas sempre souberam compreender o modo de ativar essa espécie de entusiasmo para depois o colocarem ao serviço dos seus interesses.” (Eilb-Eibesfeldt, 1977). Aqui está um dos riscos do nosso tempo, em que o medo pode ser a força motriz de um processo de violência, no qual os seus atores nem chegam a ter a consciência de que são manipulados, nomeadamente através das várias “indústrias do medo”.


Regressando às dinâmicas próprias da natureza humana, evidenciadas na História, sabemos que cada vez que o medo-agressão emergiu entre uma comunidade, num dado contexto histórico, cresceu a par a “outrificação”, essa dinâmica perigosa de criar “Outros” e, pior, de os culpar dos males que sobrevêm.


Nos nossos dias, com a crise do projeto da União Europeia (“UE”), principalmente desde 2008, essa dinâmica tem dados sinais preocupantes. Este fenómeno teve expressão não só na crise decorrente da incapacidade de acolher os refugiados que procuraram os países da UE, particularmente dos provenientes da Síria, mas também os muçulmanos europeus ostracizados em consequência do medo gerado pelos atentados terroristas. No entanto, este processo que se iniciou com o “Outro” aparentemente mais diferente, prosseguiu na UE com o crescimento de discursos protecionistas e nacionalistas em vários países, entre os quais se destacam os do “Grupo de Visegrado” , a que se somaram mais recentemente a Itália ou a Áustria. Quando o nacionalismo volta como tendência dominante, há o risco de que os tambores da guerra recomecem a rufar e que o número de “outros” ou de “estrangeiros”, na aceção negativa da expressão, aumente significativamente. Isso é já visível nas tensões entre França e Itália , inimaginável há algum tempo atrás, ou nos ecos desencadeados pelo Brexit, despertando velhos fantasmas na(s) Irlanda(s).


Este processo caracteriza-se, quase sempre, por um processo de desumanização do “Outro”. Foi assim no passado com a escravatura, com a inquisição ou com o genocídio dos judeus e a tendência repete-se. Esta dinâmica implica uma eliminação das qualidades humanas da vítima, transformando-a em “sub-humana”, quer aos olhos do agressor, quer da própria vítima. Com uma narrativa que começa por destacar a “diferença” – cultural, religiosa, de tradições, … - e que termina, de uma forma explícita ou sub-reptícia, com a referência à (suposta) ameaça que representam para a comunidade, gera-se um processo de medo e agressividade. Daqui ao discurso da necessidade de os eliminar - ou de os explorar - vai uma distância perigosamente curta.


Estes mecanismos de desumanização são sempre pródigos em estratégias de manipulação, cujas regras é bom recordar. Manipula-se começando por utilizar uma pequena parcela de verdade, introduzindo depois informações falsas, alterações de contexto e enviesamentos de enquadramento, resultando numa mensagem fraudulenta. Explora-se o que o público-alvo já está disposto a aceitar como verdadeiro, fruto dos seus estereótipos e preconceitos, construindo uma mentira na qual as pessoas estão dispostas a acreditar. Por outro lado, faz-se sempre a comparação espúria do melhor de “nós” contra o pior do “outro” e toma-se a (ínfima) parte pelo todo, correlacionando o comportamento de alguém que se identifica com um determinado grupo com todos os elementos desse grupo (exemplo: associa-se um terrorista jihadista com todos os muçulmanos). Finalmente induz-se subliminarmente caraterísticas negativas numa categoria geral duma forma persistente e continuada ao longo do tempo, gerando o efeito de “priming”, ou pré-ativação, em que se criam condições para uma resposta automática e inconsciente face a um determinado cenário, categoria de indivíduos ou comportamento que se caracterizou previamente como ameaçador.

Algumas vezes este caminho de desumanização do “outro” ganha escala e assume a dimensão do que Huntington descrevia como o Choque de civilizações, colocando nessa obra o confronto cultural e religioso na fonte dos conflitos pós-Guerra Fria. Esse efeito está longe de ser de geração espontânea. Ao invés, resulta da intencionalidade de uma minoria radical extremista que é capaz de desencadear este processo (por exemplo, com uma série de atentados “justificados” – abusivamente – com o Islão) que se alia à manipulação que outra minoria radical extremista, supostamente do lado oposto, utiliza para criar um discurso de ódio com o qual procura conquistar o poder (vide o fenómeno da extrema-direita xenófoba e racista na Europa). Mas estes extremos só têm sucesso quando a enorme maioria se deixa capturar e adere ao processo de desumanização de alguém. Por isso, é fundamental gerar consciência do que significa desumanizar e estar atento às evidências da manipulação.


Ainda a propósito dos processos de desumanização vale a pena, nesta reflexão, assinalar o contributo de Adela Cortina para a compreensão destes processos. Estes não se limitam à categoria de “outro-estrangeiro”, na expressão corrente de “Xenofobia” mas também - e talvez cada vez mais – do “outro-pobre”, fenómeno que Cortina caracteriza como “aporofobia” enquanto “desprezo e recusa dos pior colocados, quer economicamente, quer socialmente”. A autora chama-nos a atenção de que os fenómenos recentes de exclusão e hostilidade, ainda que não sejam enunciados assim, estão muito mais baseados nos atributos da pobreza do que da identidade étnica ou religiosa, ou, menos ainda, na nacionalidade. Aquele que não nos dá nada a ganhar, financeiramente falando, ou pior, que carece do nosso apoio, independentemente de ser nacional ou estrangeiro, é tratado como menor e é desumanizado. É curioso ver, neste contexto, como são tratadas pessoas com a mesma nacionalidade estrangeira consoante são “homens de negócios” ou pobres refugiados.


Ainda neste seu livro, chama atenção para os três níveis de desenvolvimento da consciência moral segundo Kohlberg, em que no primeiro as pessoas consideram justo o que as favorece individualmente; no segundo, têm por justo o que coincide com as normas da sua comunidade e, finalmente, no terceiro nível, com maior maturidade, as pessoas avaliam o que é justo tendo como referência toda a humanidade. Infelizmente, temos muitas evidências regressivas, que nos fazem situar no primeiro nível – o simplesmente egoísta – da consciência moral. E o mais estranho é que o resultado obtido, quando a regra é essa, é o oposto ao desejado: ou seja, quanto mais egoísta, maior o prejuízo próprio, como que se gerasse um efeito “boomerang” (ainda que não se sinta imediatamente o efeito).

Este ciclo de desumanização, seja por xenofobia, por aporofobia, ou qualquer outra dinâmica de exclusão, atinge em cheio a dignidade humana da vítima. E nada é mais doloroso para quem o sofre. Apesar de ser uma ferida invisível, sangra abundantemente e dói no mais fundo de cada um/a. Os estudos sobre o impacto da humilhação são hoje muito ricos para perceber esta dinâmica.


Da dignidade poderemos recuperar várias definições, mas a de Donna Hicks, no seu livro “Dignidade” pode ajudar-nos. Diz a autora que “dignidade é um estado interior de paz que se atinge através do reconhecimento e da aceitação do valor e da vulnerabilidade de todos os seres vivos”. (Hicks, 2013). Todos somos sede sagrada de dignidade humana. Esta assume-se mesmo, no que aos humanos diz respeito, como um direito fundamental e inalienável. Em nenhuma circunstância, um ser humano perde o direito à sua dignidade, mesmo quando deixa de ser respeitado, em função das suas eventuais ações moralmente erradas. Esta diferença entre dignidade e respeito merecido é importante.


A humilhação, consequência por excelência da desumanização, é profundamente destrutiva e causa danos, por vezes irrecuperáveis, que geram ressentimento, desintegração e revolta. Hicks lembra que “as ameaças à dignidade provocam a reação do nosso antigo centro de emoções, como se as nossas vidas estivessem em risco, mesmo quando não estão. Uma vez ativados, os instintos não reconhecem a diferença entre ameaça física e ameaça psicológica. Só sabem que sofremos um ataque e temos de estar preparados para agir – uma ação reativa, de autoproteção, defensiva, talvez mesmo violenta”. A seu tempo, aqueles sentimentos podem ser transformados em agressividade e violência: contra si próprio, contra o agressor, contra ao mundo em geral. (...)"



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