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  • Writer's pictureRui Marques

Filhos de um Deus menor


Nos últimos dias, por via da mediatização de acontecimentos e de pseudo-acontecimentos colaterais tem voltado à agenda pública o tema da integração dos descendentes de imigrantes. Esta integração constitui uma das principais dificuldades com que as sociedades de acolhimento se deparam e deve merecer uma atenção prioritária das políticas públicas. Sendo em Portugal relativamente recente o fenómeno de uma imigração com dimensão relevante, temos ainda pouca experiência na gestão das questões que a integração dos descendentes de imigrantes coloca. Mas importa compreender a fundo este desafio e enfrentá-lo.



Nascer em ambiente de exclusão social


Um dos impactos mais dramáticos sobre estas crianças e jovens é a particular vulnerabilidade social e económica das famílias onde nascem. Fruto da pobreza e de uma vida particularmente difícil, estas famílias lutam em condições profundamente adversas (entre emprego precário, salário baixo e incerto e horário de trabalho alargado) por um futuro que, muitas vezes, lhes foge, apesar desse sacrifício. A pobreza gera, assim, exclusão social e esta pode atingir níveis trágicos de profunda ofensa à dignidade humana. Por exemplo, o simples facto de os pais começarem a trabalhar muito cedo e não existir nos seus bairros de residência suficiente rede de apoio pré-escolar, faz com que muitas destas crianças fiquem sozinhas, “fechadas na rua”, desde idades mínimas, não sendo improvável encontrar, em alguns destes bairros, crianças de três e quatro anos sozinhas na rua, durante todo o dia. Este facto só pode ter um resultado devastador.


Um outro nível a ter em consideração é a sensibilidade extraordinária destas famílias às crises sociais e económicas. São elas que estão na primeira linha dos que são atingidos pelo desemprego ou pelos salários em atraso, quando chegam os tempos difíceis. As alternativas rareiam e as consequências são muito funestas: destabilização familiar, incentivo ao abandono escolar, comportamentos desviantes,..


Por outro lado, os espaços residenciais ao alcance destas famílias são os mais desqualificados, com habitações precárias, espaços verdes e de lazer inexistentes, equipamentos sociais incipientes, maus acessos e transportes deficientes. Muitas vezes guetizados, estes espaços sub-urbanos constituem a paisagem, à nascença, para estas crianças. Apesar de progressivamente virem a desenvolver um paradoxal sentimento de protecção dentro do bairro, no qual se começam a encerrar, todo o contraste com o mundo circundante é muito marcado. As comparações são incontornáveis e as crianças têm muito maior dificuldade em aceitar como inevitáveis e “normais” as desigualdades no Mundo.


Uma outra expressão deste contraste e desta tensão verifica-se ao nível do consumo. Estas crianças e jovens são “bombardeadas” como todas as outras – aí não há diferença – com os múltiplos apelos ao consumo. Difere, no entanto, o poder de compra. O baixo nível de vida liberta poucos recursos para o consumo de bens não essenciais e estas crianças e jovens confrontam-se com a permanente frustração de não aceder a esses bens, frustração essa que se acumula ao restante passivo. É, nesse contexto, significativo que a pequena criminalidade infanto-juvenil, que se gera nestes meios, tem como móbil prioritário nos objectos a furtar, roupa de marca, telemóveis, sapatos de ténis de marca... remetendo sempre para esse imaginário de sociedade de consumo sempre imposta e nunca alcançada.


No seio destes ambientes de exclusão social, florescem redes de actividades ilegais mais pesadas, que sabem que aí se encontram condições favoráveis para aliciamento de jovens – e menos jovens - que estão à margem, sem horizonte, nem esperança. Queremos sublinhar que não partilharmos de uma visão sistémica em que tudo depende do ambiente e dos sistemas em que o indivíduo se encontra inserido e, por isso, tudo lhe deve ser desculpado, desde que se prove esse contexto adverso. Há sempre uma capacidade de autodeterminação pessoal e resiliência que permite, na maioria destas crianças e jovens, extraordinários trajectos de vida. E, espantosamente, a esmagadora maioria consegue resistir e tem carácter e coragem para, contra todas as adversidades, não seguir esse caminho aparentemente mais fácil. Só que alguns não resistirão e serão recrutados para essas indústrias do mal.


No desfazer de equívocos, importa repetir que tudo o que até agora se descreveu resulta da exclusão social – essa é a pedra angular - por mecanismos socio-económicos que nada têm a ver com a origem nacional ou étnica das comunidades atingidas. Todos eles são válidos para crianças e jovens autóctones em igualdade de circunstâncias e verificam-se em diferentes cidades do nosso país.


No entanto, ao peso da exclusão social, já de si dramático, somam-se outras desvantagens.


Conflitos de Identidade


Apesar da discussão legítima se se deve falar de segunda e terceira gerações de imigrantes, no pressuposto que essa abordagem pode ser perversa por cristalizar um estatuto que perdura no tempo, mesmo para aqueles que não imigraram – já nasceram no país de acolhimento – é indesmentível que este grupo de crianças e jovens tem vulnerabilidades especiais que devem ser consideradas, tendo em vista a sua redução e anulação. Não defendemos, no entanto, que essa anulação de desvantagens arraste consigo a eliminação da sua memória cultural específica. A boa integração exige, em simultâneo com a plena cidadania e exercício da igualdade, que estas crianças e jovens possam manter, com orgulho, as suas origens, sem as enterrar.


É evidente, no entanto, que esse equilíbrio é difícil e da sua ausência decorrem algumas das mais tipificadas dificuldades de integração existentes. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão difícil de resolver que é ainda agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social em relação à sociedade de acolhimento, seja na recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de sub-culturas importadas.


Neste processo de crise identitária, é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas, essa exclusão, desde o berço, não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que encontram, muitas delas agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – às vezes, desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular. Ao mesmo tempo, a expressão dessa identidade rebelde é factor de reconhecimento inter-pares, dentro do grupo de referência, e de remuneração afectiva que estimula uma auto-estima quase sempre inexistente. Estranhamente - para o senso comum - esse mecanismo do “quanto pior melhor”, de violência sem móbil e de espiral em direcção a um abismo constitui-se, com uma lógica muito própria, como auto-justificação suficiente. Perante ela, saibamos reconhecer onde está a sua origem e não nos deixemos impressionar só pelo seu efeito.


Uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música têm sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro, a política ou a cultura fossem espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.


A questão da nacionalidade


Directamente ligado à questão identitária está o acesso à nacionalidade portuguesa que tem simultaneamente um impacto simbólico e consequências práticas. Como é conhecido, existem dois modelos distintos: o jus sanguinis em que o acesso à nacionalidade se dá por descendência de um nacional (é português, o filho de um português) e o jus solis, em que o acesso da nacionalidade é aberto a todos aqueles que nasceram num determinado território, independentemente da nacionalidade dos pais. Tipicamente, são exemplos do modelo jus sanguinis, a Alemanha, e do jus solis, os Estados Unidos.


Estranhamente, Portugal adoptou, no passado recente, o modelo muito marcado pelo jus sanguinis aproximando-se do modelo identitário alemão com o qual muito pouco temos a ver. É óbvio que esta opção está contextualizada num determinado período histórico – o pós-descolonização – mas deveria, vinte anos depois, ser repensada essa política.


Que sentido faz recusar – ou, no mínimo, dificultar significativamente - a nacionalidade a crianças que nasceram e sempre viveram em Portugal, comunidade que se constitui como o seu espaço de socialização e de pertença?


Parece evidente que esta opção produz, antes de mais, condições para uma exclusão e rejeição da sociedade que os viu nasceu e para os quais, não é mãe, nem sequer madrasta. Simplesmente, não os perfilhou. Somos, por isso, claramente defensores da virtude do modelo jus solis, opcional por parte dos progenitores em situação legal, que não sendo perfeito, tem um balanço muito mais positivo do que a versão oposta. Dessa forma, se cultivaria desde o berço, caso fosse essa a vontade da família, um sentimento de pertença nacional e um modelo de comunidade mais diversificado e cosmopolita. Mais do que reforçar sistematicamente a importância do lugar de onde viemos, passaríamos a valorizar, os que aqui estamos, para onde vamos.


A Escola inclusiva e intercultural..


A Escola poderia cumprir um papel extraordinário na boa integração destas crianças e jovens e, através deles, das suas famílias. É uma das novas variantes da missão de tornar a Escola permanente e universalmente inclusiva.


A configuração multicultural de muitas das nossas Escolas coloca assim um novo desafio para o qual o sistema educativo não está, em geral, devidamente preparado e que se acrescenta a outros que atingem globalmente este sistema. A gestão da diversidade, associada a uma quase sempre presente situação de exclusão social de muitas destas crianças provenientes de comunidades minoritárias, representa uma vivência partilhada por muitas escolas e seus professores, que se vêem forçados a novas estratégias e novas abordagens. Estigmatizadas muitas vezes como “Escolas-problema” a evitar, são também – muitas delas – extraordinários exemplos de respostas inovadoras.


É seguramente muito importante que se faça da diversidade uma oportunidade de aprendizagem ao ritmo de um mundo global, partilhando tradições e traços culturais, competências e saberes. Os projectos educativos devem saber integrar na dinâmica da sala de aula - e fora dela - essa diversidade presente nos seus alunos. Mas, ao mesmo tempo, devem cultivar a evidência do nosso património comum enquanto humanos, que em tudo nos aproxima, apesar das diferenças. Na Escola, deve ser possível aprender a diversidade na unidade.


Às crianças, filhas de imigrantes, deve ser viabilizado não só o acesso à educação, em igualdade de circunstâncias com as outras crianças, como devem ser desenvolvidas acções positivas que reduzam algumas desvantagens contextuais que estas crianças enfrentam. Uma delas, talvez a mais relevante, passa pelo reforço, desde os primeiros anos de vida, da aprendizagem da língua em que vai fazer o seu processo educativo. As dificuldades de aprendizagem e níveis de insucesso escolar evidenciados por algumas crianças imigrantes, radicam na sua dificuldade de entender e se expressar na língua do país de acolhimento. Mas, se estas dificuldades forem vencidas, para além do sucesso escolar, estas crianças e jovens proporcionam a primeira e privilegiada ponte linguística da sua família com a sociedade maioritária. Muitas vezes, é com eles e através deles que os pais aprendem e comunicam.


A Escola não deveria aceitar, sem uma incansável luta, a perda de muitas destas crianças, por via do absentismo e do abandono escolar. Cada vez que isso acontece é toda a sociedade que é derrotada. A particular atenção, desde a chegada da criança à escola, à redução das suas desvantagens competitivas que começam na frágil rede de suporte familiar, na habitação que não dispõe de condições necessárias para que possa estudar quando chega a casa, na ausência de materiais de apoio escolar, ou ainda nas carências básicas na alimentação, deve motivar fortemente toda a comunidade escolar. Como em relação às crianças portuguesas em iguais circunstâncias sociais, a Escola deve ser capaz de dar uma resposta precoce a estas limitações, não esperando que surjam os sinais de desintegração e de insucesso. Ao investimento colocado em sala de aula deve somar-se outro, pelo menos tão relevante, em relação ao tempo extra-lectivo em que uma Escola inclusiva pode dar ainda muito a estas crianças. O estudo acompanhado, o apoio psicológico e social, o apoio em material de apoio pedagógico, nomeadamente através de empréstimos da biblioteca escolar, são alguns dos exemplos. O regime de tutoria que quer o director de turma, quer outros membros da comunidade escolar devem desenvolver junto destas crianças pode ser também um importante elo de ligação. Nesta missão, a Escola deve ser capaz de trabalhar em rede com outras instituições da comunidade – autarquias, associações, clubes desportivos,.. – por forma a potenciar uma acção integrada e extensiva que atinja elevada eficácia tendo em vista o combate à exclusão.


Para a boa inserção destas crianças nas Escolas, pode ser útil e adequada a existência de mediadores socio-culturais, provenientes da própria comunidade de origem ou da comunidade maioritária, que funcionem como facilitadores e interfaces que quebrem isolamentos ou desfaçam equívocos resultantes de desconhecimento mútuo entre estas crianças e o sistema. Com o cuidado necessário para que não representem um papel contraproducente, que acentue as diferenças e que perpetue conflitos, os mediadores podem - nomeadamente em relação ao momento da chegada destas crianças à Escola, bem como em situações de crise - exercer a sua função de mediação, com bons resultados.


No domínio da construção da Escola intercultural, o Secretariado Entreculturas tem vindo, através de acções de formação, da edição de materiais pedagógicos, da realização e participação em seminários e congressos, ou da participação em projectos internacionais, a dar uma excelente resposta ao longo dos últimos anos. Este modelo, estabelece, nomeadamente, “um lugar significativo às diferentes tradições culturais e religiosas em todos os programas escolares, nos materiais pedagógicos, no calendário e na decoração escolares, bem como procede a autocrítica constante relativamente às práticas que conduzem determinadas categorias de alunos ao insucesso e a percursos menos valorizados[1]. Acresce ainda que valoriza a participação igualitária de todos os alunos e assume um papel contra o racismo.


Num outro modelo de intervenção, o Programa Escolhas[2], em funcionamento desde 2001, com um modelo renovado em 2004, tem representado também um importante investimento do Estado português. Com 87 projectos no terreno, envolvendo 18.000 crianças e jovens, este Programa visa o desenvolvimento pessoal das crianças e dos jovens mais vulneráveis, com particular atenção para os descendentes de imigrantes em Portugal, tendo como fim a promoção da sua integração social na comunidade onde se inserem. Fá-lo através de iniciativas diversificadas (apoio escolar, apoio à inserção profissional, ocupação de tempos livres, inclusão digital, inclusão na sociedade de acolhimento, entre outras) estruturadas a partir das necessidades sentidas pelas comunidades e pelos próprios jovens, com a lógica de projecto. Estas iniciativas visam a criação de reais oportunidades de inclusão no sistema educativo e de formação, a afirmação de um horizonte de futuro, o estímulo a um sentido de pertença e filiação social, uma cultura de auto-estima e o combate a todas as formas grosseiras ou subtis de exclusão.


É evidente que estas respostas, sendo muitíssimo úteis, não respondem a todas as imensas necessidades visíveis e invisíveis pelo que deverão ser reforçadas e multiplicadas para que não perpetuar um sistema gerador de filhos de um Deus menor.

[1] cf. educação intercultural, disponível em www.acime.gov.pt [2] ver mais em www.programaescolhas.pt


António Vaz Pinto e Rui Marques[1]

[1] Alto Comissário e Alto Comissário Adjunto para a Imigração e Minorias Étnicas

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