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  • Writer's pictureRui Marques

O Regresso das Caravelas e a Missão ao serviço do Acolhimento na Europa

Conferência


1. Nómadas e migrantes: um destino.


É já antigo o fenómeno das migrações e da consequente diáspora cultural que sempre a ele esteve ligada.


Dir-se-á mesmo que, antes de tudo, enquanto humanos, fomos migrantes. Como nómadas, fomos à procura de caça e de bens da natureza que nos proporcionassem subsistência bem como de um espaço que inspirasse alguma segurança.


A permanente divagação em busca de futuro ficou marcada, para sempre, nos nossos genes humanos.


E se a arte e o engenho - expressos nas ciências agrárias - ou o desejo de estabilidade e de segurança - com reflexo na organização social e urbana, bem como na divisão e especialização no trabalho - nos foram conduzindo para uma sedentarização, em torno de um território e de uma identidade - que nos trouxeram também fronteiras e estrangeiros - nunca abandonámos o nosso destino migrante.



2. Dos Impérios coloniais ao regresso a casa. A afirmação de novas identidades nacionais.


Mais tarde, através da guerra e da conquista, mas também da convivência pacífica, motivadas pela abertura de novas oportunidades para o comércio, ou ainda percorrendo os caminhos da expansão da sua religião, as comunidades humanas foram cruzando fronteiras, encontraram outros povos e diferentes culturas, importaram alguns desses traços descobertos, deixando também pedaços da sua herança cultural por onde foram passando.


Dessa forma, as expansões imperiais do último milénio e, mais recentemente, a era colonial desenhavam, até meados do século XX, um mundo, em grande medida, dominado por algumas grandes potências coloniais que procuravam “civilizar” os povos e culturas que colonizavam. Uma visão que se dividia entre colonos e colonizados, onde naturalmente as relações entre as culturas dominante e dominada, conduziam a um de dois modelos: a assimilação, transformando o colonizado em reprodução tão fiel quanto possível do colonizador, ou numa outra opção, separando de uma forma marcada as duas realidades socio-culturais, preservando a “pureza” da cultura colonizadora, evitando qualquer “contaminação”. Esta dualidade tem-se reproduzir sucessivamente, ainda que por outras razões, até aos modelos mais recentes.


Com o final da II ª Guerra Mundial e a afirmação dos processos de descolonização, emergem na cena internacional, novas Nações, tornando o mapa-mundo mais diverso e recortado – dos cinquenta países que constituíam as Nações Unidas, evoluímos até 191 membros actuais. Para este crescimento contribuiu também, mais tarde, o colapso do comunismo, quer da União Soviética, quer de outros países que, de uma forma mais ou menos violenta, sofreram processos de secessão como, respectivamente, a Jugoslávia e a Checoslováquia. Esta afirmação de um padrão internacional muito mais diversificado é, naturalmente, causa e consequência de profundas alterações na relação entre povos e culturas.



3. Os múltiplos efeitos da globalização

Por outro lado, a crescente afirmação da globalização condicionou também alterações relevantes, em si mesmo contraditórias. Entre as mais significativas pontuam a interligação e interdependência mundial, com a crescente circulação de bens, força de trabalho e de capital que é contrariada, muitas vezes, pela imposição de barreiras proteccionistas da parte dos países ricos, quer em relação ao comércio, mas também à circulação de pessoas, sejam elas imigrantes, refugiados ou asilados.


Ao nível cultural se, por um lado, se observa um movimento de mundialização de determinadas expressões culturais, proporcionado pelo avanço das telecomunicações, pela expansão dos media globais, ou pela facilidade de viajar, por outro lado, esse mesmo movimento permite projectar culturas minoritárias, promover a sua interacção e fusão e multiplicar a oferta cultural disponível, num quadro de crescente liberdade de expressão.


Na dimensão geo-política afirmam-se em simultâneo, instâncias supra-nacionais como a União Europeia, o Mercosul, ou o NAFTA ( aparentemente convergentes com o modelo de “aldeia global”) com explodem identidades sub-nacionais (Catalunha, País Basco, Escócia, Aceh,...) com a afirmação, na cena internacional, de especificidades etno-culturais, como, por exemplo, as línguas minoritárias. Assim o movimento da globalização, arrasta também consigo o cruzamento de diferentes realidades étnico-culturais que não se diluem. Estas perspectivas são evidentes na abordagem de Vermeulen que citando outros autores, como Featherstone e Lash, sublinha que “a globalização que coloca em crise os Estados Nação e a pós-modernidade traz o esbatimento de fronteiras e todos os cruzamentos e misturas, gerando hibridização, crioulização e pastiche. O Estado Nação é alvo de ameaças tanto do exterior como do interior; do exterior, através da génese de identidades e de associações políticas supra-nacionais; do interior, através do aparecimento de novas identidades”. Ao nível da tolerância também se verifica este efeito paradoxal, com as duas evidências: “a crescente tolerância à diferença, a maior possibilidade de escolha e a hibridação das identidades mas também as reacções étnicas e nacionalistas que extremam a diferença[1].


Assim, apesar da ascensão de um consumo – em várias áreas - de carácter tendencialmente universal, é altamente questionável que a total homogeneização seja a principal consequência da globalização. Como refere Huntington, “Algures no Médio Oriente meia dúzia de jovens podem muito bem vestir jeans, beber coca cola, ouvir rap e, entre as suas vénias voltadas para Meca, colocar uma bomba para fazer explodir um avião americano de passageiros. Nos anos 70 e 80 os americanos consumiram milhões de carros, televisores, máquinas fotográficas e acessórios electrónicos japoneses sem ficarem “niponizados”. De facto nesse período tornaram-se consideravelmente antagónicos em relação ao Japão. Só uma arrogância ingénua pode levar os Ocidentais a pensarem que os “não ocidentais” se ocidentalizarão por adquirirem artigos ocidentais.” [2]


Este mundo global acentua a fractura cavada pelas diferenças criadas pela riqueza e pobreza das nações. Ciclicamente e fruto de um complexo processo de interacções sociais, culturais e económicas as comunidades humanas ascendem a patamares superiores de riqueza ou, ao invés, mergulham no abismo da pobreza. Estas trajectórias são sempre acompanhadas de fluxos migratórios, atraídos pela riqueza e pelas oportunidades de trabalho que uns oferecem, ou repelidos pela fome e pela escassez de oportunidades que outros não conseguem evitar. O mapa das migrações é sempre o espelho destas desigualdades.


Mas, além destes fluxos de migrações de caracter eminentemente económico, soma-se outro vector que impulsiona grandes e imprevisíveis movimentos de populações: as catástrofes naturais e os conflitos. Eclodindo periodicamente, umas e outros, desencadeiam verdadeiras diásporas étnico-culturais que os países de acolhimento, exercendo a inalienável obrigação de dar protecção a estas populações, têm que gerir e, sempre que necessário devido à perpetuação da causa do movimento populacional, integrar na sua sociedade.


Assim, a dimensão, diversidade e imprevisibilidade destas migrações têm hoje uma dimensão como nunca conheceram ao longo do Século XX, com uma particular intensificação nas últimas décadas. Com uma expressão individualizada, tipificada nos motivos económicos, de quem tem que partir da sua terra em busca do pão que esta não lhe dá, esta gesta de migrantes foi sempre sinónimo de instrumento de progresso para os países de acolhimento. Se para os próprios migrantes o sonho de uma vida melhor se vai concretizando também, tal acontece com uma densidade de sofrimento e de sacrifício que merece respeito infinito.



4. Alguns dados sobre as migrações contemporâneas no Mundo e em Portugal


As Nações Unidas[3] estimavam que, em 2002, cerca de 175 milhões de pessoas residiam num país diferente do seu país natal, correspondendo este valor a 3% da população mundial, tendo este número dobrado desde 1970. 60% dos migrantes residem nas regiões mais desenvolvidas, com presença mais marcante na Europa (56 milhões), na Ásia (50 milhões) e na América do Norte (41 milhões). Esta atracção pelos regiões mais ricas faz com que 1 em cada 10 habitantes destas regiões sejam imigrantes, enquanto que nas regiões mais pobres esse racio é de 1 para 70.


Estes movimentos migratórios tiveram, entre 1995 e 2000, uma média anual de 2,3 milhões de pessoas envolvidas.


A partir do fim dos anos 70 verificaram-se, com estes aumentos dos movimentos migratórios, algumas alterações importantes nas políticas de imigração de vários Governos, quase sempre no sentido de políticas restritivas, resultantes de preocupações com as consequências económicas, sociais e culturais das migrações. Em 2001, cerca de um quarto dos Estados considerava os níveis de imigração excessivamente altos.


No caso específico da Europa, por exemplo, “o número e a origem dos imigrantes varia consideravelmente no tempo, dependendo da situação política e económica em diferentes áreas do globo. O crescimento foi particularmente acentuado a partir de meados dos anos 80”. Com efeito, continua o relatório do Banco Mundial, “em 1998, 13 milhões de cidadãos da UE (3,5% da população) eram nacionais de países terceiros, o que corresponde a um aumento de 50% desde 1985. A proporção era muito mais elevada em alguns Estados-Membros da Europa (9,3% na Áustria e 6,7% na Alemanha) e muito menos significativa na Espanha e na Itália. (..)A maioria das grandes áreas urbanas estão a tornar-se mais multiculturais e têm de desenvolver estratégias adequadas para a integração económica e social dos recém-chegados e respectivas famílias[4].


Este aumento de emigração de países terceiros para a Europa, é caracterizado pela maior diversidade de nacionalidades de origem em direcção a um país de acolhimento, com as quais têm ténues vínculos históricos ou culturais[5]. Nesse contexto, ganha particular significado, o crescimento da comunidade muçulmana, atingindo os seus principais expoentes na Alemanha (com a comunidade turca) e, em França e Espanha, com as comunidades magrebinas.


Esta experiência é também vivida em Portugal, em termos gerais, com o facto de existirem, em 2004, cerca de 160 nacionalidades presentes no nosso país, e em particular, com o acolhimento das comunidades imigrantes do Leste Europeu e da Ásia.


Com efeito, Portugal tem registado nas últimas décadas alterações importantes, quer em termos absolutos de fluxos migratórios, quer sobretudo na sua composição étnica-cultural. Desde logo, vivemos no final do séc. XX a transição de um país essencialmente de emigração para um saldo migratório positivo onde o número de imigrantes que nos procuram é superior aos portugueses que partem como emigrantes. Começámos, então, a aprender a ser País de acolhimento de imigração.


Com a descolonização e o pós-1975, para além do regresso de cerca de meio milhão de portugueses que viviam nas antigas Colónias, o nosso país foi escolhido por muitos africanos dos novos países de expressão portuguesa. Estes, fugindo à guerra ou procurando melhores condições de vida, foram-se instalando em Portugal. Nessa fase (1975/1980), a população estrangeira cresceu à taxa média anual de 12,7%[6], atingindo em 1989, o valor de 101.011 imigrantes[7], o que correspondia a 1% da população total.


Escolhendo sobretudo as periferias das grandes cidades como Lisboa ou Setúbal, instalaram-se, muitas vezes, em condições precárias e, com baixas qualificações, foram arrastados para empregos indiferenciados. Fixaram-se e poucos regressaram aos seus países de origem. Os seus descendentes, na 2ª e 3ª geração, constituem uma realidade socialmente muito distinta dos pais, órfãos de uma identidade clara, que não encontram nem no País de acolhimento, nem no País dos seus antepassados. Este é, aliás, um dos maiores desafios a uma política de gestão da diversidade étnico-cultural em Portugal, com particular destaque para o tema da aquisição de nacionalidade portuguesa que se rege por princípios muito restritivos, deixando de fora muitos destes jovens.


Nos anos 90, Portugal continuou a receber imigrantes, embora se tenha diversificado a origens, chegando a 400.000 imigrantes legais em 2002 (4% da população). Nesse crescimento, ao ciclo africano, seguiu-se um ciclo brasileiro – que em 2004 recrudesceu - que não colocou grandes questões em termos de choque cultural e, finalmente, entre 1995 e 2002, o ciclo de imigração de Leste. Esta última coloca já, ao nível cultural, questões novas, como o facto de não terem com Portugal qualquer laço histórico-cultural, não partilharem da mesma língua e serem portadores, em média, de um nível educacional superior ao da sociedade de acolhimento.

Desta forma, em trinta anos, Portugal passou a ter que gerir uma diversidade étnico-cultural dentro das suas fronteiras “metropolitanas” e precisou de se adaptar -  e continua a  precisar – a esta nova configuração. Ao nível da políticas públicas da gestão da diversidade étnico-cultural, se ao nível normativo, existe um corpo legislativo suficiente, quer por iniciativa nacional, quer por ratificação de convenções  internacionais ou de directivas comunitárias, ao nível pragmático muito falta fazer. 
Propositadamente não aprofundaremos aqui a dimensão económica da imigração – polvilhada de múltiplas vantagens para a sociedade de acolhimento – ou a sua dimensão demográfica – para a qual a imigração contribui no rejuvenescimento da população – pois o que importa nesta reflexão é situar-nos na dimensão dos Valores e da Cultura, numa leitura humanista de matriz cristã. 
5. Assimilação, Segregacionismo ou Multiculturalismo?
Perante uma tão expressiva diversidade étnico-cultural que marca as sociedades contemporâneas, evidenciada quer a um nível global – com e para além da globalização – quer ao nível do indivíduo no qual, por exemplo, fruto de 2ª e 3ª gerações de famílias imigrantes, se cruzam diferentes culturas ancestrais e da sociedade de acolhimento, torna-se essencial assumir esta questão como estruturante e prioritária. É, no entanto, ao nível nacional e comunitário que a gestão da diversidade cultural coloca mais questões e desafios. 

Balançando entre as políticas segregacionistas, que evitavam qualquer interacção profunda entre comunidade nacional e comunidades estrangeiras, até à perspectiva assimilacionista, em que se propôs como modelo, a metamorfose das comunidades estrangeiras, através da adopção plena da cultura da sociedade de acolhimento e consequente abandono da sua cultura materna, tem sido tentados diferentes modelos de políticas de gestão da diversidade étnico-cultural. Na Europa, como sublinha Rugy,[8] estas opções tem desde logo reflexos no vocabulário usado para designar os migrantes e seus descendentes: “imigrantes” em França, “minorias étnicas e raciais” na Grã-Bretanha, “minorias étnicas e culturais” na Suécia e na Holanda, “estrangeiros” ou “trabalhadores convidados” na Alemanha e na Suíça.





Inglis[9] descreve os objectivos da perspectiva assimilacionista como “pretendendo que as minorias se integrem totalmente na sociedade de acolhimento, fazendo desaparecer as suas especificidades, abandonando os traços distintivos na língua, cultura ou hábitos sociais” Esta opção, supostamente levaria ao fim das razões para crises étnico-sociais e centra a responsabilidade essencialmente no indivíduo – imigrante ou membro de um minoria étnico-cultural - que deve fazer esse esforço para se integrar. Por outro lado, Vermeulen[10] sublinha que este conceito assentava numa expectativa – não verificada - de um processo gradual, a-problemático e linear, apresentado como um modelo, ao nível cultural, onde se dá a adopção pela minoria, da cultura da maioria considerada superior e moderna.


Como exemplo histórico mais evidente surge a França, com fundamento nas teses jacobinistas, onde a cidadania é vista como um contrato entre o indivíduo e o Estado sem mediação de outras entidades. Na atribuição da nacionalidade, afirma-se o o “jus solis” permitindo a um descendente de estrangeiros, que nasça em território da sociedade de acolhimento, aceder desde logo à nacionalidade do país de acolhimento.


Assim, a assimilação surgiria como processo esperado, inevitável no quadro de sucesso de integração, interpretando o princípio da igualdade como a uniformidade e homogeneidade.


Uma outra perspectiva distinta, a que podemos chamar Diferencialista/Segregacionista, procura evitar os conflitos, minimizando ou eliminando os contactos da sociedade de acolhimento com as minorias étnicas. Em versões benignas, sublinha-se o carácter de “estrangeira” da comunidade migrante, permitindo alguma especificidade cultural, mas com baixa interacção com a comunidade autóctone. Versões extremas deste modelo fundamentam o apartheid, com o desenvolvimento de instituições paralelas para as minorias, ou as limpezas étnicas. Neste modelo, na atribuição da nacionalidade, vinga o “jus sanguinis”, ou seja, por laços sanguíneos, o que exclui da nacionalidade os estrangeiros ou, pelo menos, dificulta muito. Esta tese tem uma boa janela de afirmação com o aumento da importância da imigração de curta duração, com contrato de trabalho a termo certo, que permite manter elevada flexibilidade e dispensa qualquer esforço persistente de integração. Um dos expoentes defensores deste modelo – na sua versão mais benigna - foi a Alemanha.


No entanto, quer a experiência francesa, quer a alemã, evidenciam importantes insuficiências que estão a condicionar uma reflexão sobre evoluções futuras do seu modelo de gestão da diversidade étnico-cultural. A consciência da fragilidade e resposta insatisfatória proporcionada por estas soluções tem vindo a colocar uma pergunta difícil: que outro modelo pode ser desenvolvido, com maior sucesso?


Alguns países[11] – poucos – têm vindo a experimentar uma opção de uma política oficial de multiculturalismo que surge como “terceira via”, assumida enquanto “a diferença em diálogo ou a coexistência interactiva de diferentes culturas autónomas, unidas por um corpo comum, mas restrito, de valores universais”. Também académicos e políticos mais ousados, têm desenvolvido uma reflexão sobre este modelo, procurando evidenciar os pontos fortes e fracos desta opção.


Como abordagem alternativa tem vindo a ser reflectida e experimentada a tese multiculturalista e, numa versão ainda mais interessante, a visão interculturalista. Esta, aceita e legitima a especificidade cultural e social das minorias étnicas acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade, atribuindo ao Estado um papel muito importante na construção do modelo.


Defende-se, neste contexto, a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da cultura étnica, especialmente língua e religião, a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.


Inspirado no princípio de que “a riqueza cultural do mundo reside na sua diversidade em diálogo”, em 2 de Novembro de 2001 (já depois do 11 de Setembro), a UNESCO aprovou uma relevante Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural que reflecte a consolidação da opção por este caminho como orientação para a gestão da diversidade étnico-cultural. Radicada no paralelo com a riqueza inerente à biodiversidade para os organismos vivos (“...fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade a diversidade é para o género humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza.”[12]) e no imperativo ético indissociável do respeito pela dignidade humana[13], esta Declaração reforça, logo no preâmbulo, que se quer:

- “reafirmar que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afectivos que caracterizam uma sociedade ou grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos os sistemas de valores, as tradições e as crenças;

- constatar que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia baseada no saber

- Afirmar que o respeito pela diversidade das culturas, a tolerância, o diálogo e a cooperação, em clima de confiança e entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais.

- Aspirar a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na consciência da unidade do género humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais.

- Considerar que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações



6. Portugal multicultural e acolhedor


O multiculturalismo é a via que defendemos para Portugal. A nossa composição étnica-cultural proporciona-nos hoje um tecido diversificado, muito mais rico e menos monolítico. A suposta capacidade portuguesa de encontro com povos e culturas, experimentada ao longo de séculos pelo Mundo, tem agora um novo e definitivo teste no seu território. E os primeiros resultados, apesar das dificuldades existentes, são claramente positivos.


Importa assumir esta opção nacional pelo multiculturalismo como “projecto em permanente construção”, na consolidação do diálogo aberto e mutuamente respeitador, entre diferentes culturas presentes numa sociedade. Para as minorias resultará encorajador ter um pleno acesso a uma participação social sem ter que abdicar da sua identidade e para a população nativa é importante sublinhar não só a dimensão da tolerância perante a diversidade étnico-cultural mas também as vantagens evidentes de uma sociedade multicultural.


Nesse caminho há que ter presente que o efeito real do modelo político do multiculturalismo depende não tanto de uma política isolada, mas muito mais do efeito acumulado de várias políticas. E que a construção da uma vontade colectiva que sustente e estimule o seu desenvolvimento não é espontânea, sofrendo fortes resistências, particularmente em tempos de crise económica. Como Giddens refere na sua “Terceira Via” “o objectivo das políticas multiculturalistas – contrariar a exploração dos grupos oprimidos – é inteiramente louvável. Mas não pode ser alcançado sem o apoio alargado de uma comunidade nacional ou sem um sentimento de justiça social que tem que estar para além das pretensões e dos agravos de qualquer grupo específico.[14]


Infelizmente, há riscos elevados que este apoio alargado possa vir, num futuro próximo, a estar em causa em Portugal, como já o está nalguns países europeus.



7. O regresso do medo e a desconfiança


Diferentes vozes autorizadas têm vindo a contestar fortemente esta opção do multiculturalismo, antevendo um perigo iminente para a protecção das cultura ocidental, enquanto território de acolhimento. Este medo e atitude defensiva crescente explica também o sucesso inusitado que o pensamento de Huntington tem tido nos últimos anos, com um efeito multiplicado após o 11 de Setembro e dos acontecimentos que se lhe seguiram, à volta do seu “choque de civilizações”[15]. O autor defende na sua obra que “no séc. XX as relações entre civilizações mudaram de uma fase dominada pelo impacto unidireccional de uma civilização sobre todas as outras, para uma de interacções intensas, continuadas e multidireccionais entre todas as civilizações.” e que “o choque intracivilizacional de ideias políticas geradas em abundância no Ocidente está a ser suplantado por um choque intercivilizacional de cultura e de religião”.


Numa obra recente[16], Sartori prossegue aparentemente nesta linha polémica de “choque de civilizações”, em que critica o multiculturalismo com base em dois eixos distintos:


a) Defende que se distinga claramente, na imigração, entre os estrangeiros susceptíveis de se integrarem na sociedade de acolhimento e aqueles, que pelas suas diferenças religiosas ou étnicas, estão para lá do limite da integração. Nesse contexto, os imigrantes devem aprender a integrar-se nas estruturas, sistema jurídico e na mentalidade da sociedade que os acolhe e que, em contrapartida, a sociedade de acolhimento se adapta a conviver com as diferenças que esse imigrante é portador. É óbvia nesta afirmação, a reserva muito marcada em relação à tolerância e aceitação dos imigrantes muçulmanos que, supostamente, vêem a cultura e os valores da sociedade de acolhimento como inimigos a combater, não devendo, por isso, ser aceites na Europa.

b) Critica directamente o multiculturalismo, face ao pluralismo pois antevê no primeiro o desmembramento da comunidade pluralista em subgrupos de comunidades fechadas e homogéneas, enquanto que no segundo se manifesta uma sociedade aberta muito enriquecida por pertenças múltiplas.


Sabemos historicamente - e também nas relações interpessoais - que o medo é uma das raízes da agressão. A sua mistura explosiva com a desconfiança atinge sempre, em primeiro lugar, o estrangeiro, aquele que não sendo “nosso”, pode ser inimigo. A consolidação do medo, fomentada nomeadamente por ataques terroristas com forte impacto mediático, levar-nos-á, se nada for feito, a uma escalada irracional de agressividade e à adesão ao choque de civilizações. Esse efeito será recíproco e, então sim, o objectivo de quem conduz esta “guerra” será alcançado.


Estas nuvens negras no horizonte, fortemente adensadas nos últimos tempos, constituem um motivo adicional para uma reflexão de uma perspectiva cristã do acolhimento e de tolerância que deverá marcar a sociedade europeia.



8. A defesa da tolerância


É certo que, contra o medo e a desconfiança, se têm desenvolvido esforços na afirmação, em várias instâncias internacionais, dos valores do diálogo e da tolerância. Em 1995, foi mesmo comemorado o Ano Internacional da Tolerância, do qual decorreu uma Declaração de Princípios[17] que valerá a pena recuperar para a nossa reflexão actual. Desde logo, porque na definição de “tolerância”, sublinha a que esta “consiste no respeito, na aceitação e no apreço da rica diversidade das culturas do nosso mundo, das nossas formas de expressão e meios de ser de ser humanos. Fomenta o conhecimento, a atitude de abertura, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. A tolerância consiste na harmonia na diferença. Não é só um dever moral, mas também uma exigência política e jurídica. A tolerância, a virtude que torna possível a paz, contribui para substituir a cultura da de guerra pela cultura de paz.”


Esta mesma Declaração reconhece, no entanto, que tolerância não é sinónimo de concessão, condescendência ou indulgência, sendo antes de mais uma atitude activa de reconhecimento dos Direitos Humanos universais e das liberdades fundamentais, sendo que violação destes não pode ser justificada pelo princípio da tolerância mal aplicado.


É evidente que a aplicação deste princípio encerra dificuldades e contradições que são difíceis de gerir. Importa, por isso, consolidar o trabalho que vem sendo feito ao longo do último século para obter um núcleo comum universal de valores que toda a Humanidade beneficie e esteja obrigada ao seu pleno respeito. Mas este caminho tem ainda muitos obstáculos a ultrapassar.



9. O dever do acolhimento e o sinal cristão para a Europa contemporânea


Se ao nível político o caminho da construção da tolerância e do diálogo é prioritário, ao nível da fé cristã, escorada na doutrina de Jesus Cristo, é inequívoca e mandatória esta obrigação, que é expressa no dever do acolhimento absoluto, indo ao extremo humanamente inconcebível do Amor aos inimigos. Essa missão estruturante da vida cristã representa uma enorme responsabilidade para os cristãos neste início de século e uma esperança para o Mundo.


Na vida pessoal e das comunidades cristãs que são desafiadas a viverem este desafio no diálogo ecuménico, inter-religioso e com os não-crentes, construindo pontes que, mesmo que ultrapassem as diferenças, abram caminhos a uma civilização do Amor.


A recente Instrução Pastoral “A caridade de Cristo para com os migrantes”, da responsabilidade do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes[18] de Maio de 2004, é, nesse sentido, profundamente inspiradora. Fundamentada nos textos sagrados, a Instrução lembra que desde o Antigo Testamento se evidencia que a história do Povo de Deus é a de um povo migrante que tem, por exemplo, no Êxodo do Egipto uma expressão nuclear e estruturante da sua identidade, salientado que “a dura prova das migrações e deportações foi, portanto, fundamental na história do Povo eleito, em vista da salvação de todos os povos: assim foi no retorno do exílio (cfr. Is 42, 6-7; 49,5).”[19]

Nos Evangelhos, quer a importância do acolhimento, quer a visão universal da fé estão expressas repetidamente. A família de Jesus experimentou as agruras das migrações, fugindo para o Egipto para escapar a Herodes e O Menino nasce como refugiado em terra estrangeira. Esta identificação é retomada na personificação de Cristo no próprio Estrangeiro a acolher -“Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25,35). Por outro lado, é sublinhada nos Evangelhos a universalidade que é marca da proposta cristã - “Virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e sentar-se-ão à mesa no reino de Deus” (Lc 13,29) . Também São Paulo, insigne lutador pelo derrube de barreiras artificiais entre os homens, abre a fé cristã a todos os povos, para além dos judeus, e sonha com um destino onde “Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre” (Col 3,11).


Os textos bíblicos encerram ainda uma dupla metáfora que importa recuperar. Trata-se da conjugação da Torre Babel, no Antigo Testamento, com a descida do Espírito Santo, no Novo Testamento. Em ambas, se evidencia a multiplicidade dos povos, expressa nas línguas diferentes. Mas os resultados finais, como bem conhecemos, são opostos: da total ausência de comunicação à plenitude da comunhão, ouvindo cada qual a mensagem na sua língua.


Mas não haverá exemplo tão expressivo, como a parábola do bom samaritano. Curiosamente, a parábola coloca um estrangeiro como protagonista central e exemplar. É aquele estrangeiro que, ao contrário de todos os outros, pára e cuida do homem que estava caído à beira do caminho. Sabendo nós que o bom samaritano é o próprio Jesus, é particularmente significativo que Ele se coloque, mais uma vez, como Estrangeiro. Mas nesta parábola é um Estrangeiro que acolhe. Fá-lo no entanto de uma forma singular. Quando no final da parábola é perguntado “qual destes três (o sacerdote, o levita e o samaritano) parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões ?” (Lc, 10,36) naturalmente, o ouvinte da parábola aponta para o estrangeiro samaritano. É ele que se faz próximo daquele que desconhecia, mas que nesse momento necessitava da sua misericórdia.


A Europa e o Mundo precisa deste testemunho corajoso dos que têm como missão, tornarem-se próximos.


Quando se discute a presença – indiscutivelmente importante - de uma referência à matriz judaico-cristã no texto da futura Constituição da Europa, seria provavelmente muito mais marcante na afirmação de uma especificidade cristã da Europa a evidência experimentada da capacidade cristã de acolhimento . O verdadeiro sinal dos tempos que os cristãos podem deixar no Mundo passa seguramente pela expressão do Amor ao próximo, que nos obriga, como o bom samaritano, a tornarmo-nos próximos.

[1] In Vermeulen H. “Imigração, Integração e a Dimensão Política da Cultura”, Edições Colibri e SOCINOVA; 2001, pag. 35 [2] in S. Huntington “ Choque de civilizações e a mudança na ordem mundial”; Gradiva, 1996, pag. 135 [3] in “International Migration Report – 2002”, United Nations (UNDP) [4] in Relatório “ A situação social na União Europeia – 2002”, cap.III O desafio da mobilidade e das migrações; Comissão Europeia e Eurostat [5] Rugy, A; “Dimensão económica e demográfica das migrações na Europa Multicultural”, Celta Editora; 2000 , pag. 29 [6] Baganha, M. “ Imigração e Política, O caso português” ; Fundação Luso-Americana, 2001, pag. 15 [7] Sg. “Residentes Estrangeiros em Portugal, 1980-1989”, Lisboa, MAI/SEF, 2001 [8] idem, pag. 6 [9] Inglis, C. ; “Multiculturalism: New policy responses to diversity”, MOST – Management of Social Transformations, UNESCO, 1995 [10] Vermeulen, H. “Imigração, Integração e a Dimensão Política da Cultura”, Edições Colibri e SOCINOVA; 2001, pag. 14 [11] Os únicos países com um política oficial de multiculturalismo são a Austrália, o Canadá e a Suécia. [12] Art. 1º da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural; UNESCO [13] inscrito no art. 4º [14] Giddens, Anthony (1999) A Terceira Via; Ed. Presença, pag. 118 [15] S. Huntington “ Choque de civilizações e a mudança na ordem mundial”; Gradiva, 1996 [16] Sartori, G. “ La sociedad multietnica. Pluralismo, multiculturalismo e extranjeros” Taurus Madrid, 2002 em recensão “Os paradoxos do multiculturalismo ( e de seus inimigos)” de Isidro Maya Jariego. Universidad de Sevilla, publicada na revista Araucaria, Revista Iberoamericana da Filosofia, Política e Humanidades, disponível em http://www.us.es/araucaria/rese5_3.htm [17] Declarada e assinada a 16 de Novembro de 1995. [18] disponível em http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/documents/rc_pc_migrants_doc_20040514_erga-migrantes-caritas-christi_po.html [19] cf. ponto 14 da referida Instrução.

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