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  • Writer's pictureRui Marques

Portugal, pátria-mãe

O tema da integração dos descendentes de imigrantes tem ocupado parte significativa da nossa agenda mediática nas últimas semanas. Importa compreender a fundo este desafio e enfrentá-lo, com razão e coração. Para além das questões fundamentais associadas à exclusão social e à pobreza em que vivem muitas destas famílias e que neste contexto não aprofundaremos, importa perceber e agir sobre o sentimento de pertença e de inclusão destas crianças na sociedade de acolhimento.


Conflitos de Identidade


Apesar da discussão legítima se se deve falar de segunda e terceira gerações de imigrantes, no pressuposto que essa abordagem pode ser perversa por cristalizar um estatuto que perdura no tempo, mesmo para aqueles que não imigraram – já nasceram no país de acolhimento – é indesmentível que este grupo de crianças e jovens tem vulnerabilidades especiais que devem ser consideradas, tendo em vista a sua redução e anulação. Não defendemos, no entanto, que essa anulação de desvantagens arraste consigo a eliminação da sua memória cultural específica. A boa integração exige, em simultâneo com a plena cidadania e exercício da igualdade, que estas crianças e jovens possam manter, com dignidade, as suas origens, sem as enterrar.


É evidente, no entanto, que esse equilíbrio é complexo e da sua ausência decorrem algumas das mais tipificadas dificuldades de integração existentes. Entre a pertença à pátria/cultura dos seus progenitores (com a qual têm muitas vezes laços ténues) e a pertença à terra onde nasceram ou para a qual vieram muito novos (mas que não os reconhece como seus), estabelece-se uma tensão de difícil resolução, agravada pela crescente filiação a outra referência, sobretudo cultural, de uma pátria terceira, distinta da dos progenitores ou da de acolhimento. Este apelo a uma potencial tripla filiação leva a um conflito identitário que se reflecte de diferentes formas, seja em movimentos de desintegração social em relação à sociedade de acolhimento, seja na recusa de adesão à cultura dos progenitores ou ainda através da assunção radicalizada de subculturas importadas.


Neste processo de crise identitária, é muito penalizadora a repulsa que estas crianças e jovens sentem, desde os primeiros anos, por parte da sociedade de acolhimento. Mesmo tendo nascido em Portugal e sempre aqui permanecido, nunca são adoptados plenamente, nem pelos concidadãos, nem pelo Estado. Particularmente em relação às comunidades africanas, essa exclusão, desde o berço, não pode deixar de influenciar profundamente o sentimento de pertença e de identidade destas crianças. As defesas que encontram, muitas delas agressivas e incompreensíveis para a sociedade maioritária, têm a sua raiz muitos anos antes da sua expressão. Uma identidade rebelde é, nestes casos, um grito de alma – às vezes, desajustado e desadequado - de quem se sentiu abandonado e posto à margem e que levará muito tempo a desconstruir e a anular.


Uma outra dimensão importante para a estruturação destas identidades passa pelos modelos de referência positivos emanados da própria comunidade. Os casos de sucesso poderiam ter na “comunidade imaginada” um efeito extraordinário de motivação e de emulação. O desporto, em particular o futebol, e a música, têm sido os espaços preferenciais de casos de sucesso. Mas seria importante que também a ciência, as profissões liberais, o mundo financeiro ou a política, fossem espaços de afirmação de jovens de segunda geração na sociedade de acolhimento.


A questão da nacionalidade


Directamente ligado à questão identitária está o acesso à nacionalidade portuguesa que tem simultaneamente um impacto simbólico e consequências práticas. Como é conhecido, existem dois modelos distintos: o jus sanguinis em que o acesso à nacionalidade se dá por descendência de um nacional (é português, o filho de um português) e o jus solis, em que o acesso da nacionalidade é aberto a todos aqueles que nasceram num determinado território, independentemente da nacionalidade dos pais. Tipicamente, são exemplos do modelo jus sanguinis, a Alemanha, e do jus solis, os Estados Unidos.


Estranhamente, Portugal adoptou, no passado recente, o modelo muito marcado pelo jus sanguinis aproximando-se do modelo identitário alemão com o qual muito pouco temos a ver pois sempre fomos um povo cosmopolita capaz de viver em permanente encontro de povos e culturas. É óbvio que esta opção está contextualizada num determinado período histórico – o pós-descolonização – mas deveria, vinte anos depois, ser repensada.


Que sentido faz recusar – ou, no mínimo, dificultar significativamente - a nacionalidade a crianças que nasceram e sempre viveram em Portugal, comunidade que se constitui como o seu espaço de socialização e de pertença?


Parece evidente que esta opção produz, antes de mais, condições para uma exclusão e rejeição da sociedade que os viu nascer e para os quais, não é mãe, nem sequer madrasta. Somos, por isso, claramente defensores da virtude do modelo jus solis, opcional por parte dos progenitores em situação legal. Quem nasce e pretende permanecer em Portugal, no contexto de famílias imigrantes legais, deve poder, em querendo, ser português. Dessa forma, se cultivaria desde o berço, caso fosse essa a vontade da família, um sentimento de pertença nacional e um modelo de comunidade mais diversificado e cosmopolita. Mais do que reforçar sistematicamente a importância a origem de onde vimos, passaríamos a valorizar o destino para onde vamos.


Portugal tem pela frente o desafio de ser pátria-mãe destas crianças e jovens, num quadro de coesão social, de diversidade cultural e de unidade nacional. Saibamos estar à altura desse desafio.


António Vaz Pinto e Rui Marques[1]

[1] Alto Comissário e Alto Comissário Adjunto para a Imigração e Minorias Étnicas


(imagem : Escultura de Maria Leal da Costa, ver mais em http://www.marialealdacosta.com)


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