Este mês, partiu o meu pai. Sendo este espaço um território com assinatura, em que partilho com os subscritores a minha visão sobre o mundo, procurando cuidar de laços que se foram construindo, quero partilhar convosco a memória sobre quem (também) me permitiu ser quem sou.
“Recordo-me perfeitamente. Seria próximo do Natal e para uma criança de cinco anos só podia ser uma experiência estranha. Pela mão do meu pai, entrava numa prisão, para o acompanhar na sua visita aos presos na Cadeia Municipal de Mafra. Com um bolo feito pela minha mãe, via-o levar luz e uma réstia de esperança aquele sítio escuro. Pode ser que aí tenha nascido tudo o que o meu pai me inspirou para uma cultura solidária e de serviço ao Outro. Nunca mais saiu de mim esse momento de testemunho e de incentivo.
Da sua vida longa guardo sobretudo esse traço constante. O meu pai sempre foi um apaixonado pelo serviço. Algumas vezes, até pagou uma fatura elevada por isso. Ainda em Mafra, recordo o momento duro do injusto despedimento correlacionado com o voluntariado que fazia, ajudando outros trabalhadores da mesma empresa a preparam-se para o exame da 4ª classe e assim poderem progredir na sua carreira. Mas foi nos mais de trinta anos de voluntariado no Instituto Português de Oncologia que o vi realizar-se plenamente nessa vocação. Infalivelmente, todas as semanas aí ia, para escutar e consolar, para dar o jantar ou acompanhar nos últimos momentos os doentes oncológicos.
Coordenou grupos, mobilizou outros para o mesmo serviço e foi incansável nesse serviço de voluntariado. E quando era desejo do doente que visitava, falava-lhe entusiasticamente do Amor infinito de Deus. Da vida para além da dor do momento. Do sentido que a fé dava a todos os momentos, numa presença divina que nunca falharia.
Esse é seguramente outro traço forte da sua vida: a fé e o amor à Igreja. Foi catequista e ensinou-nos a rezar. Foi ministro extraordinário da comunhão e serviu o altar com toda a dignidade. Claro, tinha uma maneira muito própria de viver a sua fé. Talvez influenciado pelo sopro do padroeiro dos pescadores, São Pedro, não raras vezes estava pronto a desembainhar a espada, ou a deixar vir ao de cima a sua irascibilidade. Mas, como Pedro, regressava suavemente ao Mestre, pedindo perdão dos seus excessos e dos seus pecados. Como o primeiro dos Apóstolos, tinha um coração enorme. Quando rezava em público, fazia-o com voz forte e, se era para cantar, usava toda a força da sua voz. Nunca foi de meias medidas e Deus só merecia tudo de si. A sua fé tinha também por Nossa Senhora uma devoção total e por Fátima uma quase obsessão. Até ao fim, rezava o terço todos os dias, (na verdade, duas vezes por dia) e morreu com uma dezena nas suas mãos que uma das suas queridas netas lhe entregou nesta reta final.
A vida não lhe foi fácil. Nascido em Sesimbra, tendo como berço uma pobreza humilde, cresceu numa família dependente da incerta generosidade do mar, marcada pela devastação da tuberculose e pela escassez de quase tudo. A partir dessa realidade, que nunca rejeitou, foi capaz de ir além. De se levantar e procurar novos horizontes. De enfrentar o mundo, sem proteção e sem “padrinhos”. Da penúria, fez-se trabalhador incansável e, já em Lisboa, começou o seu caminho de busca de uma vida digna. Esse é outro ensinamento do meu pai. Foi um trabalhador insano, e conjuntamente com a minha mãe, a sua querida companheira de sessenta anos, foram capazes de construir outro referencial de vida, de que fomos beneficiários. Deixou-nos uma ética do trabalho, uma dedicação total ao que somos chamados a fazer e uma exigência de profissionalismo a toda a prova. Tinha em si esta ânsia da perfeição que lhe dava uma exigência total e, por vezes, excessiva. Guardo, da sua experiência enquanto trabalhador, também os anos em que me ajudou a construir a Forum ou em que serviu na CAIS. Sempre ao meu lado, para o que fosse preciso, claro.
Foram só luzes? Não. Como plenamente humano, errou também, em algumas curvas da vida. Sofria profundamente com esses erros e com a humilhação pública que lhe causavam. Mas também aí, foi encontrando a face do seu Deus misericordioso, que sempre o incentivava a voltar a tentar o caminho da bondade e sentir-se incondicionalmente amado. Espero que tenha sido isso que levou consigo nesta sua partida. A família que, nos últimos dias, se foi reunindo à sua volta, nunca o deixando sentir-se sozinho. O carinho da minha mãe, sempre presente. E a presença dos sacramentos da Igreja para o consolar.
Hoje, dia em que nos despedimos dele, escolho recordar-me da sua alegria – e como gostava de rir! – e do que gostava de reunir toda a família à volta da mesa, nos almoços ou jantares que preparavam (a mãe e o pai) com tanto gosto. Celebremos, pois, a sua vida. É tempo de dar graças a Deus pelo pai que tive."
(16.11.1937 - 6.11.2022)
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