Do contar
Provavelmente desde que nos encontrámos como humanos, contámos histórias. Ainda não tínhamos palavras e já nos desenhávamos. Ainda não sabíamos escrever e já nos descrevíamos. Por isso, ser humano é, também, uma arte de contar e acolher histórias. De as ouvir atentamente, de as olhar com deslumbre ou de as sentir com deleite. Em certa medida, somos gerados pelas histórias que nos habitam. Criador e criatura trocam de pele, nunca sabendo onde acaba um e começa outro. Produzimos histórias e as histórias produzem-nos.
Fruto da imaginação ou da memória, verdadeiras ou nem por isso, fomos então forjando e entrelaçando narrativas que captavam a atenção e abriam sorrisos. Sobre tudo e sobre pequenos nadas, encadeámos ideias e acendemos fogueiras. Dentro de nós e para nos reunir à sua volta. Talvez por isso, como Galeano contava no seu Livro dos Abraços, vistos do céu, somos um “mar de fueguitos”, de todos os tamanhos e intensidades. Brilhamos uns para os outros, também através do que contamos. Por isso, contar é sempre uma relação, o que fundamenta a centralidade das histórias na filosofia Ubuntu.
A arte de contar acolhe todos os mitos fundadores e sustenta os símbolos que nos inspiram. Gera um poder que ora encanta poderosos, ora os atemoriza sem dó. É certo que as palavras só conseguem contar parte. As imagens e os sons, os gestos e os silêncios vão muito para além delas. Mas que ninguém despreze o poder da palavra contada. Ela levanta multidões e desperta utopias. Faz antever mundos (im)possíveis e alimenta o movimento perpétuo de busca de sabedoria.
Destes contos
Esta coleção que aqui se apresenta é, na verdade, uma preciosidade. De múltiplas fontes culturais, estes contos foram escolhidos, adaptados e contados com inigualável arte e engenho. Esta escolha não foi inocente, nem ocasional. Podia ser outra, claro. Mas esta reflete o olhar do contador e a sua arte para nos desenhar caminhos.
Os contos escolhidos refletem desde a fina ironia ao humor cáustico; da ternura suave à inquietação desconcertante. Alinhados com os pilares do método Ubuntu – autoconhecimento, autoconfiança, resiliência, empatia e serviço – servem, no entanto, mais para lançar perguntas do que para fechar respostas. Prestam-se a interpretações várias. Não se obrigam a uma só “moral da história”. São janelas por onde sair, ao invés de molduras para nos limitar. Acima de tudo, dão-nos ar e asas para voar. E, se assim é, espera-se que possam ser ferramenta e combustível. Que com eles cada um are o solo de sua consciência e coloque em marcha o motor da sua vontade.
Do contador
Os contos falam-nos também do contador. É ele que lhes dá vida e os retira da penumbra. Neste caso, mostram-nos alguém muito especial. Francois Vallaeys é mestre nas pontes que faz entre a sua paixão pela filosofia e a sua arte de contar. Sempre à margem do “academicamente correto”, liga a erudição académica com o compromisso social, através do ensino da responsabilidade social universitária mas salta, sem medo, para o palco dos contos e do contar. Explora, com perícia e competência, essa ousadia cultural que não o atemoriza. François é, acima de tudo, um ser livre. De uma profundidade que nunca abdica, mostra-se como é: provocador, culto, inteligente, desconcertante. É possível amá-lo ou detestá-lo. Impossível é ser-lhe indiferente. Nós, claro, percebe-se bem qual foi a nossa opção.
A sua ligação com o Ubuntu é uma história fecunda. Por ela, somos muito gratos. Foi pela sua mão, através da União de Responsabilidade Social Universitária da América Latina (URSULA), que se apresentou, pela primeira vez, a Academia nas terras do realismo mágico. Desde então, a América Latina tem sido um continente-casa. (Também) lá pertencemos e lá nos sentimos em plena sintonia com as suas gentes e a sua terra. É uma nossa outra pátria Ubuntu.
Das ilustrações e sua autora
O risco deixa-nos com um nervoso miudinho, mas é sempre uma atração. Diálogos geracionais e conversas entre artes não são fáceis, nem imediatos. Arriscar ilustrar estes Contos Ubuntu seria sempre um ato de coragem ou, quem sabe, talvez mesmo de loucura. A Marta Marques, uma Ubuntu de mão cheia, de quem temos muito orgulho, assumiu o risco e lançou-se à obra. Junta aqui, à sintonia das palavras de François Vallaeys, a sua interpretação pessoal de cada conto. As suas ilustrações desafiam-nos para outras cores, que somam um olhar diferente sobre tudo o que se quer comunicar. A generosidade e a criatividade com que aceitou este desafio reflete não só a sua fibra pessoal e o seu carácter de artista, mas também representa a identidade dos líderes Ubuntu: dar o melhor de si, ao serviço dos outros e da comunidade, sem temer riscos, nem se poupar a esforços. Por isso, estas ilustrações são, de certa forma, a presença dos jovens Ubuntu nesta obra. A gratidão que lhe é devida – a ela e a todos os Ubuntu - não cabe em palavras.
Do futuro
Finalmente, o que chama por nós. Estes dez contos Ubuntu rasgam horizontes para o poder das histórias na metodologia Ubuntu. Com eles, e através deles, podemos consolidar, pensar, discutir, recriar ou contestar ideias.
Esta obra insere-se no âmbito do trabalho que se está a desenvolver em Gaia, com o projeto “Ubuntu no Bairro”, que serve o propósito de reforçar o desenvolvimento comunitário, numa cultura de cuidado mútuo, de serviço e de construção de pontes. A parceria com a Câmara Municipal de Gaia, em particular com o projeto “Meu Bairro, minha Rua” e o apoio do Portugal Inovação Social, tem sido muito frutuosa e ganha com este livro um importante recurso adicional.
As histórias serão sempre um excelente inicio de conversa. Connosco mesmos e com os outros. Através destas – e de outras que futuramente se venham a somar – teremos largas avenidas para perceber o que é (e o que não é) ser Ubuntu. Em Gaia ou em qualquer recanto do mundo, onde alguém se sente para contar e para ouvir estas histórias com sentido, um “fueguito” será aceso. E há que zelar para que ilumine muito.
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