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Writer's pictureRui Marques

De onde vem esta zanga?


Este “ar do tempo” é pesado. Quais são as fontes de zanga que nos atormentam? Que dinâmicas em curso nos atiram para esta fúria transversal?

Esta capa da revista Atlantic , de Abril de 2023, fez-me parar mais uma vez nesta desagradável sensação que há algo em movimento que nos deve preocupar. Como se algumas placas tectónicas profundas se movessem a caminho de um choque violento. Essa expressão têm particular relevância nos Estados Unidos - realidade a que se refere esta capa - pois os níveis de polarização e fragmentação aproximam-se fatalmente de níveis insustentáveis.


Num artigo do New York Times (”Porque está toda a gente zangada?”), a propósito deste fenómeno expresso, por exemplo, na área do consumo relata-se a fúria no comportamento dos clientes, que se começou a notar particularmente a partir do Verão de 2020, quando os estabelecimentos comerciais que tinham fechado no início da pandemia de coronavírus começaram a reabrir. Conta o artigo que num restaurante em Massachusetts, por exemplo, um grupo de clientes ficou tão furioso com a longa espera pela comida que exigiu que esta fosse empacotada - e depois, de forma teatral, deitou toda a encomenda, não consumida, no lixo. Por todo o país, os funcionários contaram histórias de tentativas de gerir a petulância descontrolada dos clientes. O empregado de supermercado que teve de lidar com a explosão de um homem no corredor dos lacticínios porque não conseguia encontrar o tipo de queijo que queria. Ou o comissário de bordo obrigado a ouvir um sermão político de um passageiro que o tinha seguido até à cozinha, furioso com a injustiça. A supervisora de uma associação comercial do Midwest que disse que os seus clientes, outrora razoáveis, se tinham tornado simplesmente maus, repreendendo e ameaçando o seu pessoal pelas razões mais mesquinhas. Conclui um outro funcionário de uma companhia aérea: "O que realmente dói são as pessoas que nem sequer olham para nós nos olhos", disse uma delas. "Já nem sequer me sinto um ser humano".


Os sinais de raiva e zanga são por demais evidentes.

Num outro artigo, agora do Washington Post, de 2020, já se evidenciava essa realidade, falando-se mesmo de uma “incubadora de raiva”.

Os americanos estão zangados. O país mergulhou na pior agitação civil das últimas décadas após a morte de George Floyd, e a raiva em relação à violência policial e ao legado de racismo do país continua a ser grande. Ao mesmo tempo, estamos a lidar com a raiva provocada pela pandemia do coronavírus: raiva contra os funcionários públicos porque fecharam partes da sociedade, ou raiva porque não estão a fazer o suficiente para conter o vírus. Raiva por ser obrigado a usar uma máscara, ou raiva contra as pessoas que se recusam a usar uma máscara. Raiva contra quem não vê as coisas da maneira "correcta". "Estamos a viver, de facto, numa grande incubadora de raiva".

Poder-se-ia tentar descansar no facto de que este processo é limitado à sociedade americana (ainda que mesmo que fosse só isso teria um enorme impacto no mundo dado o peso específico deste país para a dinâmica global) mas a realidade mostra-nos muito mais do que isso.

Aqui perto, em França, a cólera está na rua, de formas quase impensáveis.


A Euronews dava conta há poucos dias de como o presidente Macron enfrentava essa revolta nas ruas, a propósito do 1º de Maio.


Também em Portugal temos evidências significativas deste fenómeno. Há algumas semanas, o Público, publicava um artigo particularmente significativo: “A zanga dos professores não se apazigua com novidades na vinculação”. Muito mais do que uma crise laboral, parece estar em causa algo muito mais profundo e, por isso, difícil de lidar. Também aqui, a metáfora vulcânica parece fazer sentido. A explosão é brutal e muito para além da reivindicação de recuperação de anos de serviço e argumentos conexos.


Também ao nível do sistema de saúde, para citar outro exemplo, é evidente este clima, com consequências particularmente gravosas para a sustentabilidade do SNS. Neste sistema, mais do que uma contestação pura e dura como com os professores, assistimos a uma assustadora desmobilização e saída de quadros, quer médicos, quer enfermeiros, para o privado ou para o estrangeiro. E o que fui ouvindo, nos meus círculos próximos, não se trata simplesmente do sentimento de injustiça salarial, mas sobretudo da sensação de desrespeito e falta de consideração.


Mas por que está a acontecer isto?


Este fenómeno transversal e insidioso pode ter várias causas, que se contaminam mutuamente.


No início de 2022, no World Outlook Sentiment, do World Economic Forum era muito evidente este estado de espírito, à escala global, de preocupação e de zanga, em que 4 em cada 5 inquiridos se mostravam com este estado de espirito negativo.

Quando questionados sobre o futuro próximo, os mesmos inquiridos mantêm esse pessimismo em que os cenários negativos são apontados por 90% dos participantes.

Desde logo é inevitável correlacionar este estado de espirito como o rasto que ficou do impacto da pandemia Covid 19 na nossa saúde mental. As consequências do medo, das perdas de vidas, dos confinamentos, do desemprego, da incerteza económica podem ter gerado frustração e desesperança.


Por outro lado, a persistente desigualdade social e económica em muitos países arrasta esse sentimento de injustiça e de raiva, sendo particularmente evidente em Portugal o crescimento desses sentimentos associados à crise da habitação, à inflação, ao aumento das taxas de juros, ou à contestação laboral.


Também os processos de polarização política em curso, que instalam um clima de guerra permanente nessa arena, fazem crescer os discursos de ódio e de extremismo, de um constante “nós contra eles”. Inevitavelmente associado está o crescimento do populismo caracterizado por discursos políticos que prometem soluções simples para problemas complexos e que frequentemente culpam minorias e imigrantes pelos problemas do país. Daqui, num ciclo vicioso, temos causa e efeito para a zanga coletiva.


É inevitável considerar o efeito que tem o clima mediático em todo este processo. Não só pela ocupação de tempo e espaço nos media que as “fontes de zanga” ocupam, como até causas que são em si mesmo relevantes, como a proteção do ambiente e o desafio das alterações climáticas, se afirmarem constantemente pela afirmação “catastrofista”, do fim do mundo no horizonte, que leva ao eco-desespero.


Finalmente, a incapacidade aparente dos sistemas políticos lidarem com a complexidade dos nossos tempos, mostram lentidão na resposta aos desafios que se colocam, graças a uma rigidez e incapacidade de adaptação que possa conduzir a soluções eficazes e oportunas, agrava tudo isto.

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