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Writer's pictureRui Marques

Fazer amanhecer

A velocidade a que vivemos, a "indústria do medo" que nos condiciona e o hiperindividualismo que se multiplica tornam difícil o reconhecimento do rosto do outro enquanto membro da mesma família humana.

Um dia, um rabino saiu com os seus alunos para uma visita de campo, ainda antes do nascer do sol. Já em plena planície, perguntou-lhes: “como sabem quando amanheceu?”. Um respondeu-lhe: “quando somos capazes de distinguir uma oliveira de uma figueira”. Ele fez uma pausa silenciosa. Os olhos dos jovens fitavam-no esperando a sua resposta, antecipando que a que tinha sido dada não o satisfazia. Ele retorquiu-lhe: “amanhece quando olhas o rosto de um estranho e percebes que é teu irmão. Então amanheceu.”.


Este “fazer amanhecer” constitui um dos grandes desafios do nosso tempo. A velocidade a que vivemos, a “indústria do medo” que nos condiciona e o hiperindividualismo que se multiplica, tornam difícil este reconhecimento do rosto do outro enquanto membro da mesma e única família humana. Este mês de maio, celebraremos, uma vez mais, o Dia Internacional Viver Juntos em Paz, em sintonia com a ONU. A Academia de Lideres Ubuntu, projeto de capacitação para uma liderança servidora, uma ética do cuidado e a construção de pontes, irá envolver mais de mil pessoas, de oitenta países nessa celebração que é também um convite para irmos mais longe nesta construção da nossa humanidade comum.


Nesta reflexão, inspiram-nos várias figuras internacionais, entre as quais Philip Zimbardo, um dos maiores nomes da psicologia social. Celebrizado pela sua “Standford Prison Experiment”, em 1971, em que simulava uma prisão, com dois grupos de estudantes, um fazendo o papel de guardas e outro, de prisioneiros. Esta experiência (controversa e polémica) evidenciou, de uma forma profundamente perturbadora, um comportamento humano de abuso de poder e de desumanização, quando se criam as condições – ainda que simuladas, naquele caso – para tal. A experiência que deveria ter durado 15 dias, foi interrompida antes do final, tal era o impacto negativo que os participantes já evidenciavam, nomeadamente os “prisioneiros”. Infelizmente, anos mais tarde, os acontecimentos na prisão de Abu Ghraib, revelando abusos graves de soldados americanos sobre prisioneiros iraquianos, confirmavam, em versão real, este risco. Em ambos os casos, uma das dimensões mais inquietantes é que os protagonistas dos abusos era pessoas “normais” e não psicopatas ou sádicos à solta.


Para contrariar estas sementes de desumanização, Zimbardo, numa outra iniciativa, lança-nos o desafio de ativarmos o “heroísmo do quotidiano”. Com o seu projeto “Heroic Imagination”, procura desafiar cada pessoa a não se deixar condicionar pelo “efeito-espetador”, que a leva a ser indiferente ao sofrimento que está ao seu lado. Propõe que tal possa acontecer a par com a redução dos preconceitos e dos estereótipos, bem como no “heroísmo de um para um”, impulsionando cada um para que aja onde está e com o que tem, para promover a dignidade humana.


Em certa medida, o que Zimbardo faz é um apelo à nossa capacidade de “fazer amanhecer”. De nos importarmos com o que se passa à nossa volta e em assumirmos proactivamente este desígnio de aprendermos a viver juntos em paz. Compete-nos dar a resposta que mundo precisa.




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