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  • Writer's pictureRui Marques

Livro e/ou Multimédia?


Intervenção no Encontro “A Literatura para crianças no Século XXI” – Fundação Calouste Gulbenkian


Vimos assistindo sistematicamente, em diferentes contextos, a discursos inflamados entre “conservadores” e “progressistas” , entre apologistas da leitura acima de tudo – e sem mais nada ...– e defensores, a todo o custo, das maravilhas quase miraculosas do multimédia interactivo. Esta já clássica e esperada contraposição entre os defensores acérrimos da cultura do livro contra os igualmente fanáticos do novo multimédia é, no nosso entender, uma discussão estéril e sem sentido.


Com efeito, argumentam os defensores radicais do livro que este estimula a análise estruturada das ideias, a imaginação despida de imagens pré e totalmente definidas e o prazer da viagem pelas histórias lidas serenamente. É verdade. Somam também o contributo da leitura para o domínio da língua, para a capacidade de apreciar a arte da narrativa ou a beleza da poesia. E concluem, na sua análise, que tudo o que afaste os cidadãos, particularmente as crianças e jovens, dos bons caminhos da leitura é obra dos demónios da modernidade.


Por outro lado, quem está na trincheira do multimédia puxa pelos argumentos da riqueza decorrente da utilização integrada de vários meios (texto, imagem, som), da força do pensamento em rede, da imensidão de informação disponível num CDROM e na Internet ou da “adrenalina” de um jogo de computador. Também têm razão. Mas enganam-se quando deliciados com o “sucesso de mercado” destes novos suportes, aos quais as crianças aderem com grande entusiasmo, já antecipam no horizonte o “fim do livro”.


Este combate que supõe uma mútua exclusão – ou pelo menos, a clara e inequívoca sobreposição de um mundo ao outro - não se enquadra num tempo, que é o nosso, feito mais de e do que ou. Quem disse que estes meios são obrigatoriamente adversários? Porquê impor uma escolha difícil que não deve ser feita?


Creio que também a História nos dá razão. Se recuássemos alguns milénios até à invenção da escrita, ou somente uns séculos até ao tempo de Gutemberg, certamente assistiríamos a idêntica disputa entre os que se fixavam nas formas de comunicação preexistentes e os que se deixavam fascinar pelas novidades que o génio humano ia construindo. Essa disputa repetiu-se, evidentemente, nos novos confrontos com a rádio, com o cinema, ou, mais recentemente, com a televisão. Curiosamente, nenhuma destas sucessivas realidades eliminou a anterior. Apesar da normal perturbação que qualquer inovação provoca num ambiente estabilizado, o que podemos constatar é que estes vários meios se ajustaram, ganhando cada qual o seu espaço e sentido próprios, sem “abafar” todos os antecedentes. Mais: deixaram sempre espaço para que novas formas de comunicar fossem surgindo, acrescentando novos botões ao bouquet do conhecimento acessível.


Esta evolução convergente e dinâmica apela, por isso, a uma análise serena, sustentada em três ideias fortes:



1. O livro e a leitura não estão em perigo e, na sua essência, são insubstituíveis.


Nenhuma geração, presente ou futura, vai dispensar o prazer da leitura, diversificada na forma, no estilo, no momento e no objectivo. A sua especificidade própria, muito ligada ao “sabor das palavras lidas e relidas”, ao toque físico de um rectângulo de folhas de papel que folheamos ao ritmo do nosso envolvimento na história, carrega tal força que nenhuma revolução abalará.


É certo que o livro já não será o maior e melhor armazém de informação. A rede das redes absorverá para si essa antiga missão dos livros e irá cumpri-la muito melhor. Mas qual é o drama? Também não se pode esperar que no domínio do puro gozo que a literatura de “cordel” proporcionava às gerações do nossos bisavós (os que tinham acesso a livros, claro..) qualquer obra possa hoje competir com um jogo de consola ou uma novela na TV. So what?



2. O multimédia interactivo veio para ficar e… ainda bem.


A revolução digital já não depende do nosso querer. Atravessou todos os cantos da nossa vida, e insinuou-se no trabalho e no lazer, na política e na cultura. A sua afirmação, nomeadamente na dimensão da “passagem dos átomos a bits” , é em si mesmo uma conquista da democratização do acesso à informação. Como exemplifica Negroponte, tornou-se possível, independentemente de onde estou, ir a uma qualquer biblioteca, em qualquer parte do mundo. E mais: posso trazer um “livro”, que este lá permanecerá disponível. É o milagre da multiplicação dos bits. Alguém é contra isto?


Claro que a resposta já não será tão consensual se trouxermos para esta reflexão o exemplo dos jogos de computador, que horrorizam tantos. Só que nos jogos também é como… nos livros: há os de boa e os de má qualidade, os sensacionais e os execráveis. Mas, considerando as boas escolhas, quem poderá negar o seu contributo para o estímulo à descoberta de uma solução, que exige aprendizagem por tentativa-erro e a gestão da informação necessária para desvendar o mistério ? Quem poderá ignorar o seu contributo para desenvolver a persistência, a vontade de ultrapassar obstáculos, de fazer melhor? E finalmente, porquê negar, ou contrariar, o gozo que dá a pura actividade lúdica em frente a um ecrã, jogando sozinho ou acompanhado?


3. Promovamos a convergência do livro e do multimédia interactivo, cruzando os seus destinos, por forma a que se somem as suas especificidades.


Uma das palavras mais usados nos tempos que correm é convergência. No plano tecnológico, ela pressupõe que diferentes equipamentos poderão a mesma função e o mesmo equipamento poderá suportar diferentes funções. Será assim com o computador, a televisão ou o telefone que cruzarão entre si funcionalidades mas também conteúdos. Começam também a estar à venda computadores com a forma/função de “livros” que permitirão a leitura de clássicos em ecrã de cristais líquidos, confundindo suportes e funções.


Mas mais importante que estas evoluções tecnológicas – algumas delas folclóricas e inconsistentes – importa olhar, por exemplo, para a sabedoria da “velha senhora” chamada Disney. Esta empresa cada vez que pega numa história, ou num personagem, faz a sua declinação sucessiva – respeitando as especificidades próprias de cada meio – para o livro, o cinema, o vídeo, o CDROM e, agora, também a Internet. Faz, assim, um somatório de e em vez de uma difícil escolha de ou.


Já temos livros que originam filmes, que geram jogos de computador e que têm clubes de fans na Internet. E jogos de computador que dão filmes e que servem de tema para que adolescentes escrevam, a várias mãos, uma história on-line. Podemos hoje ler deliciados a poesia de Pessoa, amanhã consultar uma base de dados na Internet com toda a análise crítica publicada em todo o mundo à sua obra, e mais tarde, no regresso a casa, colocar o CD audio em que Luís Miguel Cintra diz A Mensagem aos ouvidos?


Porque deveríamos de abdicar de algum destes recursos ?


Creio que é antigo o desejo de poder somar o melhor de vários mundos. Nem sempre isso é possível. Neste caso, parece não só possível, como indispensável. Compete-nos tornar real essa conjunção de futuro.

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