top of page
  • Writer's pictureRui Marques

Sustentabilidade social –para que a nossa comunidade não deslace

De uma forma recorrente, a palavra “Sustentabilidade” tem vindo a ocupar um lugar central nos discursos no espaço público. E ainda bem, diremos nós.





Se, nos últimos tempos, grande parte desse impacto decorre da preocupação com as questões ambientais, em particular com as alterações climáticas, a abrangência da sustentabilidade vai muito além disso. Basta lembrar o tema da sustentabilidade das nossas contas públicas e o que aprendemos nos últimos anos sobre o preço a pagar quando ela é colocada em causa, por desequilíbrios associados a deficit e endividamento excessivos.


Se, porém, acreditarmos que no centro de tudo devem estar as pessoas - e as comunidades que constituem – a primeira dimensão da sustentabilidade deve ser a social. Claro que nenhum dos diferentes eixos – nomeadamente o ambiental e o económico, para além do social – pode ser visto isoladamente, pois todos eles interagem e estão interdependentes, uma perspetiva humanista colocará sempre o acento tónico nas pessoas, individual e coletivamente consideradas.


A sustentabilidade social está intrinsecamente ligada à qualidade de vida de uma população e a plena realização pessoal e comunitária de cada um dos cidadãos que a compõem. Nesse registo, ocupa uma preocupação central pleno exercício de direitos e deveres de todas as partes interessadas, acompanhado pela redução das desigualdades sociais e pelo acesso a serviços vitais, como a educação, a saúde, a cultura ou saneamento básico, entre outros, com garantia de qualidade e universalidade. Para isso, defendemos que uma ética do cuidado mútuo, uma liderança servidora e a consequente construção de capital social representam condições essenciais, que adiante abordaremos. Contudo, ganharemos acuidade na compreensão desses desafios se começarmos por observar um pouco melhor os desafios a que as nossas comunidades estão sujeitas, nos nossos dias.


A sustentabilidade social que decorre da ética do cuidado mútuo


Um dia, um rabino saiu com os seus alunos para uma visita de campo, ainda antes do nascer do sol. Já em plena planície, perguntou-lhes: “como sabem quando amanheceu?”. Um respondeu-lhe: “quando somos capazes de distinguir uma oliveira de uma figueira”. Ele fez uma pausa silenciosa. Os olhos dos jovens fitavam-no esperando a sua resposta, antecipando que a que tinha sido dada não o satisfazia. Ele retorquiu-lhe: “amanhece quando olhas o rosto de um estranho e percebes que é teu irmão. Então amanheceu.”


Este “fazer amanhecer” constitui um dos grandes desafios do nosso tempo. A velocidade a que vivemos, a “indústria do medo” que nos condiciona e o hiperindividualismo que se multiplica, tornam difícil este reconhecimento do rosto do outro enquanto membro da mesma e única família humana. Se quisermos, uma boa definição da sustentabilidade social é “fazer amanhecer”.


Nos últimos anos[1], temos trabalhado o “fazer amanhecer” através de uma chave essencial para responder a este desígnio: a filosofia Ubuntu. Esta herança de África para o mundo, a que Mandela e Desmond Tutu deram grande visibilidade, lembra-nos que “Eu sou porque tu és; uma pessoa só pode ser pessoa através das outras pessoas”. Fala-nos de interdependência e de complementaridade. Daqui decorre uma nova ética do cuidado mútuo, como condição indispensável para uma verdadeira sustentabilidade social.

A este propósito, Bauman (2001)[2] recorda-nos que:


“Nós somos responsáveis pelo outro, estando atentos a isto ou não, desejando ou não, agindo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, no nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de outros e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas.”


A consciência de que só existimos através das outras pessoas, que só somos na medida em que o “outro” também o é, na sua plenitude, impulsiona-nos para cuidar não só do outro enquanto parte integrante do meu “eu estendido” através das minhas relações, como também a cuidar de mim próprio.


O cuidado do “outro” leva-nos, inexoravelmente, ao cuidado da comunidade como um todo, na qual nos inserimos e também a cuidar do planeta que nos sustenta e suporta. Tal como dizemos em relação ao Ubuntu, este cuidado a 360º, para fora e para dentro de mim, constitui simultaneamente um fundamento da sustentabilidade social, mas também uma sua consequência. A sustentabilidade social gera cuidado e através do cuidar reforça-se também essa mesma sustentabilidade.


Sendo provavelmente um conceito forte e mobilizador – o de “cuidar” – deve, no entanto, ser interpretado com particular atenção para que não se gere uma perversão do seu sentido. Cuidar nunca pode ser expressão de paternalismo ou de infantilização, nem de superioridade de quem cuida sobre quem é cuidado. A ética do cuidado mútuo deve respeitar a autonomia e a autodeterminação de cada um/a, como expressão de liberdade individual e garantia de dignidade humana e responsabilizar todos, numa interação fecunda e recíproca. De igual forma, não impõe, de fora para dentro, um modelo de ser ou fazer, nem sequer um único padrão. Está aberta à diversidade, cultivando nela a unidade.


[1] Ver com mais detalhe, Marques, R. (2019) “Lideres Ubuntu a três tempos: cuidar, ligar, cuidar e servir” in Varios (2019) Ubuntu - Construir Pontes, IPAV, disponível em https://www.academialideresubuntu.org/images/book/IO1_PT_ConstruirPontesUbuntu.pdf. Aqui citaremos alguns excertos para reforçar a interpretação que fazemos do conceito de sustentabilidade social.


[2] Ver Bauman, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Jorge Zahar, Brasil.


A sustentabilidade social que decorre de uma liderança servidora


Uma verdadeira sustentabilidade social exige um paradigma de liderança servidora. No seu recente livro, “Direito ao Futuro”, Jorge Moreira da Silva, refere a importância desse estilo de liderança:


“No fundo, precisamos de líderes servidores. Líderes que assumem que o seu objetivo principal é servir os outros; que colocam as aspirações dos cidadãos em primeiro lugar e que medem o seu êxito pelo impacto alcançado na vida das pessoas. Este é o único modelo de liderança compatível com os desafios da Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável. (…)


(Uma liderança) que se orienta, sempre, por um quadro de valores e de princípios – integridade, transparência, independência, respeito, trabalho, justiça – e não pela leitura conjuntural das circunstâncias. Que não vive a política como um vício ou um jogo e que a encara como uma missão e não como uma adição. Que resiste ao deslumbramento. Que dispõe de um caráter forte, associando ao carisma uma verdadeira liderança moral e uma profunda consciência do interesse da comunidade. Que ausculta, em permanência, as preocupações dos cidadãos, mas que tem coragem para dizer, sempre, aquilo que é verdade, ainda que inconveniente, e não aquilo que o público quer ouvir. Que tem coragem para tomar decisões difíceis e impopulares, fazendo sempre prevalecer o interesse comum, e não o interesse individual ou partidário. Que está focado na melhoria do bem-estar das pessoas e não no seu próprio êxito. Que tem uma visão de longo-prazo, transcendendo o horizonte temporal do seu mandato. Que, defendendo sempre o interesse nacional, é portador de uma visão cosmopolita, aberta e global.


Que tem uma visão de contrato social que compatibiliza o combate às desigualdades com a reabilitação do direito ao futuro por parte das novas gerações. Que ambiciona um desenvolvimento sustentável, compatibilizando o crescimento económico com a proteção ambiental e com o bem comum.”


Esta parece ser uma aposta certa para uma comunidade que quer alcançar a sustentabilidade social.


A sustentabilidade social que decorre da construção de confiança


Finalmente, importa sublinhar que a sustentabilidade social tem uma correlação fortíssima com a confiança.


Quando refletimos, por exemplo sobre a pobreza e a riqueza das nações, o que condiciona o seu desenvolvimento ou o seu afundamento, vezes de mais somos canalizados para a análise da disponibilidade de recursos naturais, de capital ou de força de trabalho qualificado. Procuram-se, assim, explicações nos motivos mais óbvios que sendo parte da verdade, não a esgotam e, muitas vezes, distorcem-na.


Como Alain Peyrefitte[3] acreditamos que o que justifica o desenvolvimento sustentável de algumas nações é, acima e antes de tudo, o serem sociedades de confiança, onde se conjugam a liberdade, a autonomia e a responsabilidade, numa mistura virtuosa que faz milagres. Essa dinâmica assentaria fundamentalmente numa sociedade caracterizada pelo vínculo da confiança entre os seus cidadãos e entre cada um deles e as instituições. A estes acresceria, em lugar cimeiro, a confiança de cada um em si próprio, o que lhe daria uma capacidade de empreender e de assumir riscos, que seria essencial para o desenvolvimento.


Os índices de confiança na sociedade portuguesa têm vindo a sofrer uma erosão persistente, o que nos leva a não confiar em ninguém, nem sequer em nós próprios. Somos bombardeados por uma visão sempre pessimista da realidade e influenciados por um ambiente hostil de ataques cerrados por tudo e por nada. De igual forma, ficamos condicionados por uma evidência de maus exemplos, destacados na agenda mediática, e inevitavelmente somos empurrados para esta desconfiança militante que nos mina e nos corrói.


Quando assistimos à descredibilização – justificada ou não, pouco importa para este efeito – da política, da justiça, da autoridade policial, das empresas, da saúde ou da escola, a desconfiança dispara e perde-se a mola essencial capaz de nos projetar para os mais altos voos. Ficamos deprimidos e encolhidos. Medrosos e cinzentos. Falta-nos o combustível para caminhar, porque a confiança se esvaiu.


Precisamos de cuidar da confiança. Necessitamos de nos disciplinar para recusar a destruição suicida dos elos de confiança que nos unem (ou uniam). Devemos, ao mesmo tempo, cultivar pequenos e grandes gestos que nos mostrem que há – por regra - todas as razões para confiar e que os motivos para desconfiar (que também existem) não representam senão uma mínima expressão. Da mesma maneira, devemos fazer florescer tudo o que reforça a autoconfiança em cada um de nós. Nas nossas crianças e nos nossos adultos. Não há batalhas impossíveis para quem confia em si próprio e nos outros.

Esta responsabilidade é de todos nós. Sem confiança, não há futuro.


Precisamos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que as nossas comunidades não deslacem. Assim, a sustentabilidade social, estruturada em torno de uma ética de cuidado mútuo, de uma liderança servidora e de uma permanente construção de vínculos de confiança, deverá constituir uma dimensão vital de uma comunidade pujante.


[3] Ver “Sociedade da confiança”, Edições Piaget.

bottom of page